domingo, 1 de dezembro de 2013

Do quanto se pode falar de quem não se conhece? O quanto eu estou certa em minhas impressões? Seus olhos falam mais que a sua boca. Mais falam suas mãos. Sua boca em silêncio fala mais, quando me beija a testa. O jeito como você chega e encosta, me conta um pouco do que você quer. Acho que anda cansado. Cansado dos anos, cansado da espera, cansado de ser. Quer repousar. No meu colo encontrou maciez. Reciprocidade. Não sei, com precisão, qual parte da história você quer mudar, qual parte das incumbências quer abandonar e nem porque escolheu o caminho da luta. Não sei o que teria feito você ter vindo a mim. Sei que essa casca que você tem, não te faz mais parte. Sei que quer deixá-la para trás, mas não sabe como. E sei que as novas escolhas te fazem precisar dela. Tenho medo das suas novas escolhas, porque, humildemente, tenho uma versão de quem sejas. E ela contradiz tudo que todos dizem sobre você. Não sou mais ou menos do que todos os outros, sou apenas quem te acolhe sem a casca. Quem te vê sem a casca e te gosta sem ela.  Na minha casa você entra e deixa a casca na porta, com os chinelos. Porque só na minha casa, você vem com chinelos. Tenho a sorte de ver a sua parte mais bonita. Não faço ideia dos motivos, da motivação e nem das reais intenções (suas e de Deus). Não sei que fez com que o caminho de um encontrasse o do outro.  Sei que fui avisada da sua chegada, mas não prestei atenção as previsões. Sei que me encontrou em vantagem. Vantagem de estar sonhando acordada, andando em meio as flores, com o corpo quente de um coração em paz.

domingo, 13 de outubro de 2013

Menina, faça um pouco de silêncio porque quero lhe falar do que é obvio. Mas que nada tem de óbvio para você (ainda). És moça pura e tem o cheiro do leite dos seios de sua mãe. Seus olhinhos inocentes ainda não ganharam a amplitude dessa raposa velha que vos fala. Você me diz que viveu um amor verdadeiro e que seu coração nunca o esquecerá. Você se lamenta por não conseguir sentir, pelos novos que se aproximam, nada de parecido. E o cheiro de nenhum deles é tão agradável quanto era o do seu amado homem. E nenhum abraço é mais quente e nenhum te esquenta o peito. Também nenhum deles te olhou nos olhos com a sinceridade franca e doce dos que amam. Nenhum desses colos te deu o conforto de um lar. E nenhum conseguiu ver seu sorriso tão feliz como ele já foi. Vou te dizer, porque te gosto, e te gosto desde do primeiro dia. Te gosto como mãe, como pai e irmão. Te gosto como amiga mais velha. Te digo que o gelo que sente vem de dentro. Esfriou-se seu coração. E ele está tão gelado que esfria o calor do peito de quem te abraça. Tornou-se uma pessoa desconfiada e começas a duvidar que encontres ainda um substituto nessa vida para algo que foi tão significativo. Posso te dizer, querida amiga, que talvez não encontre. Posso te dizer, querida amiga, com toda certeza que esses anos de vida me deram, que nunca o esquecerá. E você sempre será o ser humano mais pleno desse mundo nessa sua doce lembrança de menina moça. Mais do que que foras, de fato, na presença do seu amado. A lembrança é sempre mais doce, porque o amor nos faz esquecer as partes amargas. Te direi mais. Seguiras congelada e sem esperanças por algum tempo. A quantidade de tempo, dependerá somente de você. Por isso, te digo, com ainda mais certeza: seu coração voltará a se aquecer. E te aconselho a abri-lo assim que puder. Não tenha pressa, mas não se acomode nessa neve. O frio é perigoso. Demais. Se ponha ao sol o quanto antes for possível.

domingo, 22 de setembro de 2013

Vapor quando desce é chuva

Hoje você fala em coisas que eu não consigo entender. É política dos grandes homens, que eu não acompanho. É discussão de algum fato que eu não fiquei sabendo. É de um mundo que não é meu. Hoje em dia, a distância é uma montanha russa, que só desce sem jamais subir. Um carrinho está solto nos trilhos, sem freio e sem segurança. É só de ida. Cada segundo a mais da descida torna mais impossível o retorno. Ingrime e veloz, desenfreada distância. Ninguém está no carrinho, nem eu nem você. Nós, só o empurramos. Talvez um tenha empurrado com mais força do que o outro, mas isso nem importa. O fato é que não (re)conheço mais quem mais amei na vida. Como não poderia deixar de ser. É das fatalidades de envelhecer. É das fatalidades que o tempo trás, no decorrer dos aniversários que fazemos. Das coisas que inevitavelmente ficam para trás e que de tão longe nem parece que foi com a gente, nem parece que era a gente que estava lá vivendo todas essas banalidades. Banalidades que eu nunca mais quero viver nessa vida, porque me decidi por algo mais meu. E ninguém se reconhece mais. Só se sabe do que há de ser feito na segunda de manhã. Nada mais. E se me dizia que amor não era, te digo que nem o que você pensou que fosse é mais. É antes, o contrário disso: distância.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

É que quando chega a hora da foto, todo mundo sorri

Eu odeio escrever. Odeio.  Porque quando escrevo me  revelo toda e aí sou obrigada a olhar para o que eu sou. Essas linhas tortas. Fico de frete para toda dor que eu carrego dentro da alma. E todos ficam sabendo: do quanto a vida me dói no peito, do quanto eu me sinto só, ou do quanto eu choro. Dificilmente eu conto do quanto eu sorrio. Eu sorrio o tempo todo. Sou agradável na maior parte do tempo e com a maior parte das pessoas. Só os íntimos sabem do meu turbilhão. Sei que firo gravemente um dos mandamentos da lei divina que proferem os homens: "honrar pai e mãe". Sou má filha, sou má irmã e má neta. Porque sou amarga com as pessoas íntimas (apesar de que quem mais me conheceu na vida, me ache doce... deve ter problemas gustativos). É sem maldade. É porque perco a paciência com a existência e porque me é custoso existir, mais do que para a maioria, eu diria. E nada é mais íntimo a mim do que essas linhas tortas. Não sei porque teimo e volto para essa página em branco e a transformo num mundo de inquietude. Tenho tido dias alegres e em companhia de pessoas boas, de coração bom, e por isso tenho escrito pouco. Porque me é difícil falar de alegrias. Eu tento e as vezes me dou bem. Acho que é porque a alegria se basta e não carece de versos. Ou é porque ela me ocupa tanto que esqueço de ser triste e esqueço de escrever, minha triste escrita. É certo também que escrever me alivia. Não é apenas uma revelação das minhas tormentas. Quando eu escrevo, te dou minhas tormentas. Passo a bola. E leve para você, logo, que já está demais. Faça delas o que bem ou mal entender. Como já estou confusa agora e escrevo num momento de alto choque, sei que corro sérios riscos de me perder e não chegar a lugar nenhum. Já sinto que estou sendo anestesiada por minhas defesas. Aprendi com o tempo, desenvolver um estado de paralisia diante de coisas muito graves. Já me aconteceram algumas. Ou talvez não tenham sido e na verdade seja mania minha de sentir muito por pouca coisa. Toda dolorida a pobre moça. De corpo e alma. Não sei se os bons dias irão se tornar tendência. Não sei se vivo a dor ou corro dela. Não sei onde me sinto mais viva. Não saberia dizer em qual sou mais representada. Não sei. E já começo a perder o sentido. É o choque. De que jamais irei falar - por conta da minha defesa. Vou me limitar a isso.

sábado, 27 de julho de 2013

Te procurei a noite para te dar a mão. Mais uma vez, te direi das cores que vi no céu. Viajei até o outro lado do rio de canoa com os amigos de Amanda. Tenho orgulho. Sinto um aperto de saudade cada vez que ela me olha nos olhos com a sinceridade que só  você era capaz de me fazer sentir. Os olhos muito pretinhos. Não sei se é isso, se é o preto. Nunca pude entender e nem descrever com precisão o que é que tinham seus olhos. Você tinha olhos que embaçam. Olhos enuveados, eu diria. É essa a sensação. Talvez seja. Sempre ouve algo na frente do seu olhar. Era como se nunca tivesse visto seu olho de verdade, sempre escondido por detrás. Talvez a sinceridade fosse, então, da nuvem. Olhos nublados, sempre nublados. Mas que nunca choviam. Esses olhos teus. Nunca choviam. Como os dela não chovem. Não há porosidade nessa nuvem. Ela só guarda, mas não escorre. Guarda toda a água com ela, e não nouardou? Te amo tanto. Quando te vi de olhos fechados, dentro do caixão, senti tanta falta. Falta dos seus olhos, falta da nuvem. Queria ter visto seus olhos por uma última vez. Só fui encontrar semelhante algodão nos olhos de nossa filha. Ela, que nunca pode guardar uma lembrança sua em sua pequena memória de menina, mas guardou tantas semelhanças com você que parece até invenção de minha cabeça. E não é. Claro que ninguém vai perceber o que eu percebo. Ninguém te conhecia como eu. Ninguém a conhece como eu. Um dia não terei mais esse conhecimento, sei que os filhos crescem e se vão. E se tornam distantes e se aproximam de outras pessoas e a gente acaba perdendo o jeito sobre eles. Tem dias que eu a aperto contra o peito e sinto o seu abraço. Ela sorri. Ela sabe. De alguma forma, ela sabe que o verdadeiro motivo do meu abraço nesses dias é matar a saudade que sinto de você. E ela também sabe o quanto tem de ti. Esses dias me disseram que deveria me preocupar com a amizade que ela tem com a Luciana. Que é preocupante que duas meninas andem tão juntas e que tal atitude não pode ser boa para o caráter. Sei que você se preocuparia tão pouco quanto eu. Elas formam um belo casal, e se entendem tão bem, e vivem sorrindo e descobrindo a vida juntas. Que mal pode ter? Ela saiu mesmo à gente, ao nosso amor. Pura, de coração inflado, sorriso largo, olhos de nuvem. De nuvem no céu, céu de estrelas. Olhos de luar, olhos de lua cheia, olhos nublados. Quantos olhos tem nossa filha, quantos céus traz na alma. Ela é linda. "Digna de ser amada", como quisemos nós. Um sonho nosso, meu e seu. Um sonho vivo que corre pelo mato descalça e toma banha de rio e banho de sol. Sempre magrela, sempre douradinha, sempre com a Luciana. Quem dera ter te conhecido assim tão jovem como ela conheceu Luciana. Teríamos conseguido aproveitar mais. Mas, sei que ainda temos todo tempo desse mundo e de todos os outros. E que esperas tanto por esse dia quanto eu.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Hoje eu acordei de sobressalto, assutada com o meu próprio nome. M-A-R-A. Nome estranho. Palavra mais sem pé nem cabeça. M-A-R-A. Tinha a Mara Maravilha, mas assim fazia sentido. O "Maravilha" tornava a "Mara" alguma coisa. Uma coisa maravilhosa aliás. Mas eu era Mara, só Mara. Se ao menos eu fosse Mara Leite, já seria menos pior. Tipo marca de leite, o leite Mara. Seria melhor. Mas sou Mara Souza. Sobrenome só da mãe. Se tivesse  "i" faria sentido, e eu me chamaria Maria, com "i". Porque Maria, foi a mãe de Jesus e só por isso teria sentido. "Maria" por sí só não tem sentido. Se a mãe de Jesus fosse "Clara" ao invés de "Maria", "Maria" não teria sentido algum e seria igual a "Mara". Nomes próprios não tem sentido nenhum, a exceção dos santificados e dos que homenageiam celebridades e pessoas da família. Por exemplo, estudei com uma menina chamada Madonna. Não por causa da cantora, mas por causa de um quadro. O nome dela fazia sentido porque representava alguma coisa. Representava uma obra arte. Bonito. Minha tia chama Lucíola por causa do romance. Minha prima chama Sandra porque assim chamava sua avó. Por isso a Sandra prima tem coerência, mas já a Sandra sua avó não. Esta pobre, era Sandra porque era Sandra. E só. Que nem eu, pobre de mim também. Que não sei porque raios me chamo Mara. Nome infeliz que nada representa. Minha mãe, que Deus a tenha, dizia que quem escolheu meu nome foi meu pai. Pai esse que eu nunca conheci. E a investigação teve que ficar por aí mesmo. Enigma eterno. Nunca pude saber porque assim me chamo. Karma. Injustiça. Caso arquivado. Mas e eu? Algo tão colado em mim, pregado na minha carne, na minha alma, no meu tudo. Tudo meu é de "Mara", e minha mãe espalhava etiquetas com meu nome em tudo que levava para a escola. E eu nem sei nada sobre isso. E nem pediram minha opinião. Madonna diz que o nome dela foi um lindo presente. Boba Madonna. Tudo bem, estou com inveja. Não me recriminem. Estou chateada. Talvez mais. E nem me venham falar em dicionários de nomes. Eles igualam todo mundo. Deve ter Madonna neles e nem por isso ele representa minha amiga. É falso. É fingimento, puro fingimento para que a gente se sinta bem e confortável. Querem nos silenciar. Querem nos calar e calar nossa vontade por respostas. Nos querem dóceis. Ovelhinhas. Preciso mencionar que também tem sentido os nomes que representam flores. Margarida, Rosa, Petúnia. Preferia chamar margarida, mas ninguém me perguntou. Foram me enfiando a força numa roupa que eu não escolhi e que não me representa. "Mara". "Mara" não me representa porque "Mara" não representa ninguém. E nem nada. "Mara". Seco. Um cuspe seco.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Eu trago. Não do verbo trazer, mas do verbo tragar. Eu te trago. Te sugo.
Me sinto como mar, a lamber suas pernas e te puxar para mais perto. Sempre mais para perto.Te encharco. Se você deixa, te invado ao ponto de te privar do ar. Estrangulo. É sem propósito, é sem querer. É porque sou líquida. Sem forma. Escorrego. E meus olhos escorrem. E vou entranhando devagar.
Não é por vontade minha. Por isso temo pela vida dos que me vem, porque há sempre risco de morte. E risco de morrer. As vezes recuo, e recuo.
Ninguém consegue ver muito bem o que guardo no fundo. A maioria se satisfaz com a minha superfície. E gostam do meu toque. E de como os coloco para ninar. E da sensação de estar dentro. Se banham quando querem, o quanto querem e se vão. Simplesmente. Alguns me tem mais amor. Outros, mais admiração. Tem gente que tem medo. Tenho força, mas não sei usar. As vezes revolto, às vezes tranquilo. E mudo assim em pouco tempo. Sou um pela manhã, outro a tarde e mais um outro a noite.
E a ressaca é avalanche. Ninguém vem até mim nos dias de ressaca. Solidão salgada.
Sou muito, muito volumosa. Caudalosa porque me bifurco. E me perco tanto e tantas vezes. E acabo sempre perdendo um tanto de água por aí. Qualquer dia eu seco. Primeiro rio extinto.
E, por fim, cuspo todos para fora. Nada é capaz de permanecer em meio a tantas ondulações. E no final, só me resta a mim. Mar adentro.
 

terça-feira, 11 de junho de 2013

Oh passarinho, chegue mais perto! 
Te vejo aqui da varanda tão bonito. Se diverte pulando de um galho para o outro. 
Seu canto me faz um bem tão bom. E você parece sorrir. 
Mesmo que seu coração seja tão leve, e mesmo que eu esteja te vendo de tão longe, posso distinguir o bater do seu coração do bater das suas asas. Suas azinhas ligeiras e de um colorido mágico. Elas te levam para tão longe de mim... mas seu coração te traz de volta. Talvez te agrade essas árvores que eu plantei em volta de mim e só por elas que você venha. 
Ô passarinho, sou tão pesada e não sei voar como você. Fico tão presa aqui no chão e me sinto tão sozinha quando você não canta, Mas eu entendo. É porque não sou pessoa egoísta e quero que leve sua música por aí. Eu aguento a espera. 
Sabe passarinho, acho que fico tão velha enquanto te espero. E você está sempre com a mesma idade. Deve ser porque nunca me deixa te ver mais de perto. Que você tanto esconde de mim? Tem medo de que te ponha numa gaiola? Oh não pense tão mal de mim! Nunca poderia fazer isso com você. Se toda sua beleza vem do contraste de suas penas com o azul do céu e todo meu fascínio por você vem da sua liberdade. Eu gosto mais é de te ver voar e de ver sua leveza. Ela me ensina. Se pensa assim de mim é porque não entende o que eu sinto por você. É porque sente diferente por mim. Me entristece que pense assim e só queira voar para longe. Sei tão pouco sobre você. É que passarinho não fala. Mas mostra. E o que você me mostra eu guardo. Esses dias, te escapuliu uma peninha sabia? Eu guardei. Guardei porque ela me faz lembrar que você existe e está em algum lugar desse céu. E eu sei que enquanto estiver pelo céu você estará feliz. E eu te quero bem. Sei que enquanto houver céu haverá felicidade em você, passarinho. E a minha felicidade está em acordar todo dia e ver que, por mais um dia, o céu se abriu para que você voe.

domingo, 2 de junho de 2013

De manhã, minha vó veio me dar notícia de que tinha chorado. Havia morrido um dos rapazes que, vez ou outra, vinha entregar água aqui em casa. Ouvi todo o caso e as lamentações de minha vó com ar de paisagem. Nada posso concordar com ela. Vovó mal conhecia o homem. Lamentou por ele ter deixado dois filhos pequenos. Afirmou que o morto era um homem sorridente, que parecia "gostar tanto de viver" e que era ainda tão jovem. Como se o direito a morte só pudesse ser dado aos velhos. Felizmente, Deus é mais justo que os homens e permite que a morte chegue para qualquer um. Nada disse a minha vó, não podia fingir condolências, nem forçar uma tristeza que não sentia. O que senti foi pura inveja. Quisera eu poder ter a eternidade de uma morte antes dos 30. Não sei há quanto tempo eu esperava por morrer, não me lembro quando e nem como começou esse meu desejo. Minha idade, mesmo que pouca para alguns, já me era muito: muito custosa, muito pesada, muito densa, muito sofrida. Minha vida era desnecessária a mim. Talvez fosse necessária a alguém. Mas a mim, não era. Olhei o mundo cara-a-cara por diversas vezes e não gostei nada do que vi. Tenho muito mais motivos para não gostar da vida e para não criar boas expectativas sobre ela. Há, obviamente, uma beleza e um prazer em tudo, e não nego ter coisas boas para me recordar depois de morta. Talvez, chegue a sentir saudade. Mas, certamente, se pós morte me perguntarem por minha preferência, responderei que quero continuar em meu sono eterno. E se me mandarem de volta, acredito que vou nascer chorando mais do que chorei desta vez, se é que isso é possível. Chorei, sem descanso até os dois anos de idade. Não dormia e comia mal. É isso, á nasci sem vontade de nascer... Quando finalmente chegar minha hora, não tenho dúvidas de que estarei pronta. Mais do que isso, estarei radiante. O grande sonho se realizará. Não penso em suicídio. Mentira, vou reformular: não cometeria suicídio. Nem cometerei. É indigno, é desonesto. Há que esperar o prazo da validade, de boa vontade ou não. É um transtorno, enorme. Interminável espera. Entretanto, já não tenho outra alternativa. Não consigo querer outra coisa com tanto amor. Me afeiçoei a ideia de morrer, como faz um filho a mãe. Nada me parece ser mais prazeroso. Nenhuma outra opção parece capaz de me trazer tanta paz. Há muita dor na vida. Ninguém sabe a dor que eu sinto quando abro os olhos, todos os dias, e preciso me levantar. Na vida, posso dizer que tenho duas certezas: a de que vou morrer um dia; e a outra é a de que uma pessoa estará comigo até o dia em que eu morrer: eu mesma. A segunda certeza é o que me faz ansiar tanto pela primeira certeza. Sabendo que jamais conseguirei livrar-me de mim mesma e; que sou a causa de toda minha desgraça, logo, jamais poderei livrar-me de minha desgraça -  a não ser que me livre de mim mesma. É uma condenação: viver minha vida comigo mesma, até o fim. Só de falar, me pesam um pouco mais os ombros. Sorte tem esse moço. Se ele carregava apenas água nas costas ou o peso morto de uma vida que já não tinha, não sei. Só sei que ele já não tem mais corpo. E quem não tem corpo não carrega peso, flutua por não sofrer sob a lei da gravidade. E se regala por não ter que dar conta de estar vivo.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"E porque vocês não ficam juntos?" Eu sorri. Tanta simplicidade e franqueza me constrangeram. Não tinha resposta para dar a ela. Como explicar para uma criança de cinco anos que aos vinte e quatro as coisas não são tão fáceis.A história se arrastava mesmo antes dela ter nascido. Mariana era esperta, era dos poucos membros da família que me fazia refutar a teoria de que eu era adotada. Ela esperava minha resposta. Os olhinhos de menina estavam ávidos por uma solução e sei que a cabecinha se esforçava por tentar entender. Ela sabia que parecia comigo. Talvez não percebesse isso tão conscientemente. Mas, o fato era que ela sabia, de alguma forma ela sabia. Eu era sua prima favorita sem dúvida, e quando a gente é criança tendemos a criar grandes expectativas nos adultos de que mais gostamos. Era o caso. Acho que ela queria confirmar se devia ou não continuar se espelhando em mim. Queria saber se eu era bem sucedida. Se eu fosse, estaria decidido: iria querer ser como eu. E o amor é algo muito relevante para meninas de cinco anos que assistem cinderela. Se para mim era, para ela com certeza era também. Ter ou não um final feliz era decisivo para que ela continuasse me adorando. Ainda haviam outras primas a quem se espelhar e ainda dava tempo de mudar de reflexo. Como eu queria fugir de Mariana. Já me arrependia de ter dado corda ao assunto. A danadinha já sabia onde queria chegar desde o começo. Eu tola, caí. As vezes me esqueço de que as crianças chegam mais facilmente onde querem e nos manipulam de uma maneira ímpar."Não sei", respondi eu a ela. "Vocês não se gostam?" retrucou, obviamente insatisfeita com minha resposta. Ai como era difícil dizer qualquer coisa a ela. Eram perguntas tão óbvias mas que ninguém nunca teria tido a audácia de me fazer, nem mesmo eu. Não tão diretamente, e em voz alta. Só queria um jeito de escapar de Mariana, de escapar da pergunta, de escapar de toda essa situação. Era tão difícil para mim e tão obscuro e, no entanto, uma criança tinha colocado tudo em termos tão claros e diretos que me deixava sem escapatória. Estava envergonhada e só queria sair correndo. Sabia que ela não daria trégua. As crianças não tem coração, são uns monstrinhos insensíveis, sem piedade. Pensei em mentir. Pensei em dar uma desculpa qualquer. Quanto mais um pensava e mais demorava a responder, mas ela se mostrava impaciente e eu sabia que ela faria outra pergunta se eu não a respondesse. "Acontece... é que eu sei porque não estão juntos." Eu a olhei com atenção. "É porque ainda não é o momento não é?". Eu tive vontade de dar uma boa gargalhada. Quantos anos, Mariana? Cinco? Acho que não. Você me observava a muito mais tempo. Já tinha me escolhido como preferida mesmo antes de ter nascido. E talvez, eu que fosse seu reflexo e só desejasse mais que tudo ser como você.

domingo, 19 de maio de 2013

Prazer, Sofia. Tenho tantas confissões a fazer, mas ninguém para ouvir. Minha aparência intimida os homens e minha introspecção me afasta das mulheres. Nunca fui de muitos amigos. Todo mundo fala do mundo de Sofia. E dos sonhos de Sofia? Ninguém quer saber. Mas, eu posso te contar deles. Acho que há uma certa urgência, inclusive. É que dizem por aí que guardar "as coisas" dá doenças. Dizem que o câncer se explica assim. A ideia de ter tanta coisa para falar à ponto de se formarem caroços na gente, que querem sair a qualquer custo, me faz muito sentido. As doenças são muito interessantes. A medicina é que estraga tudo. Não gosto de médicos. Eles tem sempre consultórios gelados que me deixam com as unhas roxas. Fico sempre nervosa. E eles sempre acham que sabem mais de mim do que eu mesma. Pois eu digo é que não sabem nada sobre mim e eles ou me dão de ombros, ou se irritam, ou riem e me receitam vitaminas. Se eles se dedicassem a ouvir um pouco mais a gente e um pouco menos essa tal de medicina, chegariam a conclusões bem mais brilhantes. E eu poderia falar de meus sonhos. Cansei de falar do que dói. É só isso que eles gostam de ouvir: "onde dói?", perguntam. E se a resposta for "na alma", eles te dão um encaminhamento para um psicólogo. Não gostam mesmo da alma. Só da carne, são carnívoros. Nem ovo devem comer. Tampouco saladas. Mas , dizem que devemos comê-las. São a contradição do universo. Cirurgiões, então? Nada me dá mais medo no mundo. Pessoas que gostam de cortar as outras e podem fazê-lo livremente. Tratam a gente como bife. Na minha opinião um desejo desses deveria ser crime. Ao contrário, eles tem todo respaldo da lei e toda cumplicidade da sociedade. A sociedade ouve os sonhos do cirurgião, quando penso em falar dos meus ela se faz de surda. Ninguém pode ser mais respeitado do que um médico, oh não. E nossas filhas, se casarem com médicos serão as mais felizes e bem tratadas. Jamais me casaria com alguém que passou o dia todo cortando e remendando pessoas. Não conseguiria dormir. Não sei como eles dormem.Te digo que tratamento terão suas filhas... eles são uns materialistas, é só matéria e matéria, a ser costurada e suturada e não sei mais os termos. E as mulheres tem uma alma dolorida de nascimento. Haverão problemas...  E a doença da alma? Ninguém valoriza quem se ocupa delas. Escutar uma alma dolorida não dá dinheiro. A sociedade ri de quem escuta a alma, ou chama de louco. E os psicólogos são loucos. Não sou psicóloga, mas se fosse, seria triste. É uma profissão de gente triste mesmo. Ninguém dá crédito para quem escuta sonhos. Os meus já estão começando a encaroçar.

domingo, 12 de maio de 2013

A frieza do vidro me constrange. Tão liso, tão gelado. E quando parte ainda corta. Tão agressivo. Acredito que comparar uma pessoal à um vidro seria uma tremenda ofensa. O que pode ser mais indiferente? Não conheço. O vidro nada te oferece, nada te dá sobre ele mesmo, nem uma pista. É pior que os espelhos, que também não demonstram nada deles mesmos, mas lhe oferecem ao  menos o mesmo que você dá a eles: você mesmo. O vidro nem isso. Ele é vazio. Ele não tem nada, não é nada. Nada pode te dar. Você mal o vê.  O vidro é um cabeça dura, só se pode alterar sua forma por meio temperaturas tão altas que não se pode resistir. Nada resistiria. Pois ele resiste e cede, mas logo esfria e retoma sua sua postura ausente. É mesmo um duro. Nada nosso consegue atingir o vidro: tocamos e não ficam rastros, molhamos e logo escorre, tudo que o suje é facilmente limpado. O vidro é imaculável, é um imaculado. Só há um jeito de constrangê-lo: espatifando-o. Aí ele se torna um impossível, e meses depois ainda se acha cacos. Ele morre com o segredo. Espatifa e morre, mas nada nos diz sobre si. Nunca entenderemos.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Até agora não falei do que vou falar. Não sei o que será de mim depois disso. As consequências poderão ser irreversíveis. A verdade é que fiquei muda, completamente. Apertaste tanto minha garganta que perdi a voz por um tempo. Quando senti que a tinha recuperado, percebi que me tinhas costurado a boca. Deixei. Tudo que fizeste comigo foi com meu puro consentimento. Deixei. Eu que tendo a gostar de sentir dor, pelo costume dos anos. Pois agora, não quero mais a boca travada. Arranco tuas amarras nem que me custe o lábio. E estouro os pontos. Pois bem. Chegou a hora. É preciso falar do que mais se quer esquecer. Que outra forma conheço eu de libertação senão escrever? As palavras são meus meios de ser. Sou em versos. Por muito tempo me roubaste todas elas e só por maldade, porque não te vi em nenhum momento as usando. Nem me chegou a notícia de que te viram com elas por aí. As tiraste de mim por saber que são elas, minha única companhia. Sabes que sem elas sou mais só do que é possível ser. Seu maior crime. Sem palavras não me organizo. Toda minha vida precisa ser enfileirada, palavra após palavra para que eu a veja e reconheça. Para que eu saiba. Por isso, até hoje não sei. Nada consegui dizer sobre o assunto. A cada narração do acontecido, perdia uma palavra, e de tanto tentar contar, fiquei sem nenhuma. Minha forte vontade de lembrar, apagou-me toda memória. Não me recordo bem dos eventos. Lapso de memória: eis outro dano que me causaste. Custa-me reverter o quadro. Custa-me recompor a saúde. Me deste um tiro no pé e me deixaste sangrando até morrer. Depois me juraste que eras homem bom e disseste que a culpa era minha. Disseste por aí que eu tinha perdido juízo e que andava a inventar história sobre você. Culpou-me de ser impura. Culpou-me por amar. Culpou-me por não saber ser sua. Quiz que eu ficasse, fez-me juras eternas. Nunca saberei se foram verdadeiras. Eu vim, não paguei para ver. Quando achei que agarrarias minha saia, na última tentativa de me impedir, inesperadamente me deixaste vir. No calor do corpo de quem se liberta e de quem ainda treme de medo pelo perigo corrido, não pude perceber os danos nas minhas cordas vocais, nem a boca pregada. Corri para onde a vida me arrastasse depressa, me enfiei na multidão em busca de ser só mais uma. Mesmo correndo o risco de nunca mais conseguir sair.