segunda-feira, 27 de maio de 2013

"E porque vocês não ficam juntos?" Eu sorri. Tanta simplicidade e franqueza me constrangeram. Não tinha resposta para dar a ela. Como explicar para uma criança de cinco anos que aos vinte e quatro as coisas não são tão fáceis.A história se arrastava mesmo antes dela ter nascido. Mariana era esperta, era dos poucos membros da família que me fazia refutar a teoria de que eu era adotada. Ela esperava minha resposta. Os olhinhos de menina estavam ávidos por uma solução e sei que a cabecinha se esforçava por tentar entender. Ela sabia que parecia comigo. Talvez não percebesse isso tão conscientemente. Mas, o fato era que ela sabia, de alguma forma ela sabia. Eu era sua prima favorita sem dúvida, e quando a gente é criança tendemos a criar grandes expectativas nos adultos de que mais gostamos. Era o caso. Acho que ela queria confirmar se devia ou não continuar se espelhando em mim. Queria saber se eu era bem sucedida. Se eu fosse, estaria decidido: iria querer ser como eu. E o amor é algo muito relevante para meninas de cinco anos que assistem cinderela. Se para mim era, para ela com certeza era também. Ter ou não um final feliz era decisivo para que ela continuasse me adorando. Ainda haviam outras primas a quem se espelhar e ainda dava tempo de mudar de reflexo. Como eu queria fugir de Mariana. Já me arrependia de ter dado corda ao assunto. A danadinha já sabia onde queria chegar desde o começo. Eu tola, caí. As vezes me esqueço de que as crianças chegam mais facilmente onde querem e nos manipulam de uma maneira ímpar."Não sei", respondi eu a ela. "Vocês não se gostam?" retrucou, obviamente insatisfeita com minha resposta. Ai como era difícil dizer qualquer coisa a ela. Eram perguntas tão óbvias mas que ninguém nunca teria tido a audácia de me fazer, nem mesmo eu. Não tão diretamente, e em voz alta. Só queria um jeito de escapar de Mariana, de escapar da pergunta, de escapar de toda essa situação. Era tão difícil para mim e tão obscuro e, no entanto, uma criança tinha colocado tudo em termos tão claros e diretos que me deixava sem escapatória. Estava envergonhada e só queria sair correndo. Sabia que ela não daria trégua. As crianças não tem coração, são uns monstrinhos insensíveis, sem piedade. Pensei em mentir. Pensei em dar uma desculpa qualquer. Quanto mais um pensava e mais demorava a responder, mas ela se mostrava impaciente e eu sabia que ela faria outra pergunta se eu não a respondesse. "Acontece... é que eu sei porque não estão juntos." Eu a olhei com atenção. "É porque ainda não é o momento não é?". Eu tive vontade de dar uma boa gargalhada. Quantos anos, Mariana? Cinco? Acho que não. Você me observava a muito mais tempo. Já tinha me escolhido como preferida mesmo antes de ter nascido. E talvez, eu que fosse seu reflexo e só desejasse mais que tudo ser como você.

domingo, 19 de maio de 2013

Prazer, Sofia. Tenho tantas confissões a fazer, mas ninguém para ouvir. Minha aparência intimida os homens e minha introspecção me afasta das mulheres. Nunca fui de muitos amigos. Todo mundo fala do mundo de Sofia. E dos sonhos de Sofia? Ninguém quer saber. Mas, eu posso te contar deles. Acho que há uma certa urgência, inclusive. É que dizem por aí que guardar "as coisas" dá doenças. Dizem que o câncer se explica assim. A ideia de ter tanta coisa para falar à ponto de se formarem caroços na gente, que querem sair a qualquer custo, me faz muito sentido. As doenças são muito interessantes. A medicina é que estraga tudo. Não gosto de médicos. Eles tem sempre consultórios gelados que me deixam com as unhas roxas. Fico sempre nervosa. E eles sempre acham que sabem mais de mim do que eu mesma. Pois eu digo é que não sabem nada sobre mim e eles ou me dão de ombros, ou se irritam, ou riem e me receitam vitaminas. Se eles se dedicassem a ouvir um pouco mais a gente e um pouco menos essa tal de medicina, chegariam a conclusões bem mais brilhantes. E eu poderia falar de meus sonhos. Cansei de falar do que dói. É só isso que eles gostam de ouvir: "onde dói?", perguntam. E se a resposta for "na alma", eles te dão um encaminhamento para um psicólogo. Não gostam mesmo da alma. Só da carne, são carnívoros. Nem ovo devem comer. Tampouco saladas. Mas , dizem que devemos comê-las. São a contradição do universo. Cirurgiões, então? Nada me dá mais medo no mundo. Pessoas que gostam de cortar as outras e podem fazê-lo livremente. Tratam a gente como bife. Na minha opinião um desejo desses deveria ser crime. Ao contrário, eles tem todo respaldo da lei e toda cumplicidade da sociedade. A sociedade ouve os sonhos do cirurgião, quando penso em falar dos meus ela se faz de surda. Ninguém pode ser mais respeitado do que um médico, oh não. E nossas filhas, se casarem com médicos serão as mais felizes e bem tratadas. Jamais me casaria com alguém que passou o dia todo cortando e remendando pessoas. Não conseguiria dormir. Não sei como eles dormem.Te digo que tratamento terão suas filhas... eles são uns materialistas, é só matéria e matéria, a ser costurada e suturada e não sei mais os termos. E as mulheres tem uma alma dolorida de nascimento. Haverão problemas...  E a doença da alma? Ninguém valoriza quem se ocupa delas. Escutar uma alma dolorida não dá dinheiro. A sociedade ri de quem escuta a alma, ou chama de louco. E os psicólogos são loucos. Não sou psicóloga, mas se fosse, seria triste. É uma profissão de gente triste mesmo. Ninguém dá crédito para quem escuta sonhos. Os meus já estão começando a encaroçar.

domingo, 12 de maio de 2013

A frieza do vidro me constrange. Tão liso, tão gelado. E quando parte ainda corta. Tão agressivo. Acredito que comparar uma pessoal à um vidro seria uma tremenda ofensa. O que pode ser mais indiferente? Não conheço. O vidro nada te oferece, nada te dá sobre ele mesmo, nem uma pista. É pior que os espelhos, que também não demonstram nada deles mesmos, mas lhe oferecem ao  menos o mesmo que você dá a eles: você mesmo. O vidro nem isso. Ele é vazio. Ele não tem nada, não é nada. Nada pode te dar. Você mal o vê.  O vidro é um cabeça dura, só se pode alterar sua forma por meio temperaturas tão altas que não se pode resistir. Nada resistiria. Pois ele resiste e cede, mas logo esfria e retoma sua sua postura ausente. É mesmo um duro. Nada nosso consegue atingir o vidro: tocamos e não ficam rastros, molhamos e logo escorre, tudo que o suje é facilmente limpado. O vidro é imaculável, é um imaculado. Só há um jeito de constrangê-lo: espatifando-o. Aí ele se torna um impossível, e meses depois ainda se acha cacos. Ele morre com o segredo. Espatifa e morre, mas nada nos diz sobre si. Nunca entenderemos.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Até agora não falei do que vou falar. Não sei o que será de mim depois disso. As consequências poderão ser irreversíveis. A verdade é que fiquei muda, completamente. Apertaste tanto minha garganta que perdi a voz por um tempo. Quando senti que a tinha recuperado, percebi que me tinhas costurado a boca. Deixei. Tudo que fizeste comigo foi com meu puro consentimento. Deixei. Eu que tendo a gostar de sentir dor, pelo costume dos anos. Pois agora, não quero mais a boca travada. Arranco tuas amarras nem que me custe o lábio. E estouro os pontos. Pois bem. Chegou a hora. É preciso falar do que mais se quer esquecer. Que outra forma conheço eu de libertação senão escrever? As palavras são meus meios de ser. Sou em versos. Por muito tempo me roubaste todas elas e só por maldade, porque não te vi em nenhum momento as usando. Nem me chegou a notícia de que te viram com elas por aí. As tiraste de mim por saber que são elas, minha única companhia. Sabes que sem elas sou mais só do que é possível ser. Seu maior crime. Sem palavras não me organizo. Toda minha vida precisa ser enfileirada, palavra após palavra para que eu a veja e reconheça. Para que eu saiba. Por isso, até hoje não sei. Nada consegui dizer sobre o assunto. A cada narração do acontecido, perdia uma palavra, e de tanto tentar contar, fiquei sem nenhuma. Minha forte vontade de lembrar, apagou-me toda memória. Não me recordo bem dos eventos. Lapso de memória: eis outro dano que me causaste. Custa-me reverter o quadro. Custa-me recompor a saúde. Me deste um tiro no pé e me deixaste sangrando até morrer. Depois me juraste que eras homem bom e disseste que a culpa era minha. Disseste por aí que eu tinha perdido juízo e que andava a inventar história sobre você. Culpou-me de ser impura. Culpou-me por amar. Culpou-me por não saber ser sua. Quiz que eu ficasse, fez-me juras eternas. Nunca saberei se foram verdadeiras. Eu vim, não paguei para ver. Quando achei que agarrarias minha saia, na última tentativa de me impedir, inesperadamente me deixaste vir. No calor do corpo de quem se liberta e de quem ainda treme de medo pelo perigo corrido, não pude perceber os danos nas minhas cordas vocais, nem a boca pregada. Corri para onde a vida me arrastasse depressa, me enfiei na multidão em busca de ser só mais uma. Mesmo correndo o risco de nunca mais conseguir sair.