segunda-feira, 15 de março de 2010

E se eu te disser que o que eu faço não tem nome, só tem cor, só tem brilho, só tem tom.
E se eu te disser que sou inominável, escapo de onde me emolduram, escorro de onde me colocam.
E seu eu te disser que sou agora, depois não sei e amanhã serei mais.
Terás que me revirar dos pés a cabeça a todo momento, e por todos os dias (até o fim de minha ou de sua vida),, para me conhecer, saber minhas causas, saber o que causa, o que me passa. Terá que ter fôlego para experimentar o que me torno a cada instante. É trabalho incessante, sem fim. Por outro lado, assim te oferecerei toda gaça de quem está está sempre descobrindo, sempre deslumbrado ou assustado ou sejá lá como te deixe. Infinitas possibilidades, menos o tédio de uma verdade suprema: és tudo o que posso te ofertar.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Raiva. Muita raiva. Era tudo que Ana Maria conseguia sentir nesse momento. Nada menos cabível. A vida tinha andado, finalmente. Desde os 15 anos estava emocionalmente envolvida com um mesmo rapaz. Mesmo que ele nunca venha a saber disso. Uma amor de menina, puro, simples, bobo: risível. Aff! Foram penosos três anos de amor calado, num silêncio que seria de túmulo, como dizem, mas a expressão aqui não ficaria boa, pois o amor não morreu. E amor enquanto não morre, aumenta. E assim foi. Ana Maria nutria esse sentimento com colheradas fartas de fantasias, de vontades, sonhos banais como comer brigadeiro embaixo do cobertor num domingo de chuva e frio. Suspirava imaginando a presença diária de Ricardo, seu sorriso perfeito. Imaginava com ele o acordar, o fim do dia. Ficava remontando com ele cenas de cinema e comercial de margarina. Os atores: ela, ele e três filhos homens loiros como o pai. Chegava mesmo a encenar certas fantasias e por vezes se pegava falando com ele, sozinha. Era como se ele realmente estivesse com ela as vezes. Ela sentia a presença dele de uma maneira triste de quem sabe que está se enganando. Enfim, assim foi por três longos anos de encontros ao acaso. E agora, sem mais nem menos, ela tinha enfim, se apaixonado por outro. E como assim se apaixonado por outro? Depois de tantos e tantos dias sofridos, sonhando, desejando, planejando... e tudo teria de ficar assim, perdido, largado, irrealisado, abandonado como uma caixa de sapato que ninguém guarda sapatos e então, não serve para mais nada. Quanta imaginação disperdiçada, quantos suspiros em vão. Que maldição, que peça o destino tinha lhe pregado. Ora quem diria, apaixonada por outro. Apaixonada por Getúlio. Homem sem graça, homem miúdo, homem pálido sem expressão, sem menor jeito de homem, homem que faça filhos (que dirá filhos homems). Entretanto, Getúlio era dono das fantasias sexuais mais cabulosas que Ana Maria poderia pensar. Não, não podia ser, isso não podia estar acontecendo com ela. Era muita injustiça para ser verdade. Isso devia ser coisa dos hormônios, muito tempo se guardando para um homem só dá nisso, a pessoa endoidece. Que fazer agora? Sonhar tudo denovo? Porque ela não iria dar a Getúlio os sonhos mais lindos de sua vida, os sonhos que não eram dele, não eram para ele. Era a vida com Ricardo. Era a vida feliz com Ricardo. Isso não combinava com Getúlio. Com ele a coisa era outra, era pele, era beijo, era amasso. Logo com aquele homem, que para morto, bastava perder a vida. Cruzes. Muita raiva, muita raiva. Ana Maria bufava de raiva. Agora, tinha dois amores, amava dois homens. E como pode ser isso, como pode querer a dois para ter do lado. Na verdade Ricardo era pra ter do lado, Getúlio era para ter emcima. Será que ela estaria condenada a sujeira de ter um amante para o resto da vida? Será que mesmo que se casasse com Ricardo, não haveria de tirar da mente os sonhos impuros com Getúlio? E teria de o procurar nas tardes em que o marido estivesse trabalhando e tivesse que arriscar todo seu casamento de margarina por insaciáveis aventuras carnais? Céus, esses pensamentos só a deixavam querendo mais. Os dois. E por fim se enchia de raiva e mais raiva. Como ela podia ter deixado isso acontecer, como ela tinha se deixado levar pelos encantos moribundos do outro. Será que nos dias de hoje não se pode confiar nem em si mesmo? Sua vida era tão feliz e amável enquanto tinha sido fiel a um homem só. E se a solução fosse acabar com Getúlio? O outro é que ela não ia querer ver num caixão. Será que depois que a morte  levasse Getúlio de todo, ele ainda atormentaria seus pensamentos e ela acordaria no meio da noite suando frio, gelada pelo desejo nunca realisado? Uma desgraça, era isso que sua vida era agora, arrastada ao amor por dois homens, dois homens! Deus jamais a perdoaria por tanta gula.