segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ele a conquistou assim: exatamente por ser simples. Nunca fez por onde impressioná-la, sempre agiu naturalmente, como se cada gentileza fosse realmente verdadeira, sem pretensões. Ela achava incrível, como tudo tinha contecido, como no meio de tanta gente, ele a tinha escolhido. Ela não tinha nada demais. Era bonita, mas beleza se acha em tantos lugares e em tantas coisas; no entanto, ele foi logo se interessar por aquela que ela tinha. Poderia ser acaso. Poderia ser sorte. Dá no mesmo, são só pontos de vista diferentes para a mesma coisa. Isso não importava, o que importava mesmo era aquela tarde num dia improvável que os dois passaram juntos. É, porque incrivelmente ele ligou para ela depois do dia em que se conheceram. E trocaram mensagens pelo celular por três semanas, até que ele conseguisse voltar para vê-la novamente. E ele veio. E veio de longe e foi até a casa dela buscá-la como se fosse o mais natural do mundo fazer isso. E digo natural, não porque ele fizesse isso com todas, mas porque ele a tinha escolhido, oras. Era tudo tão óbivo e fácil que era assustador. Não era como se já se conhecem, era como se fosse para se conhecerem.
Ele não falava muito e ela acabava inibida pelo silêncio dele e se limitava. Só que isso não a incomodava, e esse era o estranho. Mesmo sem saber muito dele e mesmo que ele não soubesse muito dela, o encontro dos dois era incrivelmente agradável. Não era estafante, nem ofegante. Era na medida certa, no ponto exato para que fizesse com que os dois quisessem mais, mas sem pressa. Tudo corria com calma, devagar. Ele não a apressava, deixava que tudo fluisse. Estava perto o suficiente para se fazer presente e longe o bastante para que ela quisesse saber mais. E, talvez o que ela mais quisesse era que ele assim ficasse por um bom tempo: incógnita.

domingo, 11 de outubro de 2009

É claro que eu iria até sua casa só para ouvir escondida atrás do muro você cantar Bob Marley enquanto lava roupa. E nos momentos que você deixasse o cd cantar sozinho, eu iria sentir sua falta e ia pedir em silêncio que você voltasse a me dar o prazer de sua voz. O barulho da água da torneira caindo na bacia, junto com aquele outro barulho que faz o movimento das suas mãos esfregando a roupa talvez já baste para que eu não me sinta tão sozinho, mas só o timbre brando da sua voz é capaz de me dar o conforto para continuar na luta de viver longe de ti: saber que você existe. Em algum lugar, não importa, se longe ou se perto, mas você existe. Continua vivendo em alguma parte de mim, do mundo. A certeza de que você está presente é tudo que preciso: saber que tenho para onde correr, meu querido abrigo. Que eu posso correr para os seus braços quando sentir muito medo ou dor. Durmo em paz, sabendo que amor eu tenho e que não mais preciso de nada, além da fantasia minha por ti. Afinal, quem canta enquanto lava a roupa sou eu e não você, mas é que nessa confusão entre nós, nos misturamos tanto que não saberia mais dizer quem sou eu e quem é você. Como se, agachada atrás do muro para te ouvir, ouvisse minha própria voz soltando notas em melodia harmoniosa. E como poderia ser diferente, se te levo para todos os lugares comigo, e se quando vai leva também uma parte minha, do que somos. Peço desculpas por te confundir com um alma tão impura como a minha, e se nessa brincadeira acabei te turvando um pouco e te fazendo se sentir tão obscuro, tão desonesto, sinceramente não era minha intençao. Mas, é que não sei te tomar assim como substância pura. E aquele a quem dedico meus sentimentos, não é mais do que uma experiência minha, criações dos meus sentidos, do meu próprio corpo, do meu próprio ser: coisas assim tão enganosas, tão imparciais, tendenciosas. Não és mais do que aquilo que invento, não és mais do que eu quero que sejas, amor.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A julgar pelo tempo, parecia junho. Chovia rasoavelmente como se fosse início de inverno. Nem tanto quanto março, mas nem tão fino quanto julho. Só que era outubro. Do outro lado da rua a vitrine com biquines e sombrinha de praia denunciava a primavera. "Eita tempo doido" pensava Joana enquanto abria a porta do prédio com certa dificuldade, equilibrando a sombrinha enorme e mais uma bolsa de compras, só com uma das mãos. Mesmo do lado de fora se ouvia o pagode irradiando do apartamento do vizinho do primeiro andar e ao fundo uma voz acompanhava a letra em alto e bom tom. Joana achava aquilo agradável, dava uma falsa imagem de familiaridade. E entrou no prédio cantando também. Entrou, fechou a sombrinha, trancou a porta e subiu até seu apartamento 201. Ao entrar deixou a chave do lado de dentro da porta, largou a bolsa na mesa da cozinha, tirou o tênis e o levou junto com a sombrinha para a varanda. "Oi choquito!". Choquito era o peixe que ficava no centro da mesa da cozinha e também era a única compania de Joana no apartamento. A varanda era pequena bem como o apartamento, tinha uma lata de livo, um varal posicionado acima dela e um tanque. Largou o tênis e a sombrinha no tanque. "Vê só se eu não levo a sombrinha grande, ia chegar toda ensopada aqui". Joana ia tirando a roupa pela cozinha enquanto ia falando com o peixe. "Quando eu era criança, as estações eram todas certinhas Choquito, mas você nem sonhava em nascer nessa época..." e desabotoava o casaco cinza de veludo. "Agora tá tudo assim... tudo assim...tudo mudado...". Catou as peças de roupa e se aproximou do aquário, fazendo bico e falando igual criança:"E você ficou bem, ficou?". Ficou um tempo olhando o aquário. Suspirou. O vizinho se esguelava de cantar. Foi para o quarto. Sentou na cama só de meia e calcinha, com as roupas nas mãos. Muda, desolada. "Como as coisas mudam" repetia em pensamento. Como as coisas mudam. Quando nova o tempo era mais decidido e Joana também. Do alto dos seus vinte e sete anos, se sentia bem predida. Não era mais forte como antes, com aquele pulso firme de quem sabe o que quer, de quem quer. Se via confusa, com propósitos embaralhados: um certo tumulto que as coisas começam a ter num certo período da vida. Joana já tinha passado da fase de querer mudar o mundo e vencer a qualquer custo. Já não malhava para concorrer com a Juliana Paes, já não cordenava sua equipe na empresa de telefonia como se fosse Roberto Justos, já não esperava encontrar um Gianechini em cada sexta-feira a noite. A vida era mais lenta, as vontades eram mais humildes, as decisões menos escandalosas. "É... o tempo, vai passando, a idade vai chegando... a gente amolece...", falou em tom desperançoso. Essa não era a vida que Joana imaginava ter naquela idade. Com vinte e sete anos, já queria estar com um casal de filho ou pelo menos com um e grávida do outro. Filhos de Mateus, obviamente, seu noivo a sete anos. Joana se sentia como um pudim a cozinhar eternamente em banho maria, no fogo brando. Quando começou a namorar Mateus, Joana sabia que era com ele que formaria família, sonhos, vida. Aquele papo fofo de ficar juntos e morrer velhinhos numa casa com quintal e com os filhos e netos criados. Agora, Joana achava isso balela, mas não se via em condições de pôr fim a sete anos de tantas e tantas ilusões agradáveis. Ele parecia um fogão de seis bocas no começo de namoro; agora, ela não o via mais do que como um fogão de lenha. Mas, isso valia para ela também. Aos vinte se achava brilhante, cheia de vida, de fôlego. Hoje, estava toda murcha e fazendo suas refeições com um peixe beta vermelho que era sempre trocado por um mesmo modelo quanto o anterior morria. Fazia isso a uns três anos ou mais. Outro suspiro. "Como as coisas mudam...". Um estalo, talvez a frase merecesse uma pontuação diferente : "Como as coisas mudam? Como as coisas podem mudar tanto assim gente!? Como a gente um belo dia acorda e se vê vestindo roupas cafonas e usando uma vidinha tão demodê, tão medícre? O quê que acontece que faz a gente se tornar assim tão opaca, tão fatigada?". Aqui o pensamento teve que ser cortado pelo berro do vizinho, incorporando o refrão. "É isso". A chuva apertava. Joana foi mudando a expressão: os olhos pausados e os lábios se invertendo num discreto sorriso que não mostra os dentes, só eleva as bochechas. Largou a roupa que ainda segurava em cima da cama, foi até a cozinha pegou o mini aquário do peixinho vermelho com as duas mãos e o encarou com um olhar cheio de certeza e mantendo o mesmo sorriso do quarto. Tomou agora o aquário só com uma das mãos e com a outra abriu a porta. Saiu assim, só de meia, calcinha e Choquito, e esqueceu até de trancar a porta. Com o aquário firme entre as duas mãos, desceu as escadas até o vizinho cantor. Parou em frente ao se apartamento por uns instantes olhando a porta através do aquário de aguás cintilantes posto em frente ao rosto. Via de forma contorcia o número 103. A música era tão alta que não adiantaria nem tocar a campainha. Abaixou e colocou o aquário em cima do tapetinho verde da entrada do apartamento. Sorriu maliciosamente e subiu confortada as escadas de volta para o seu apartamento. Os olhos brilhavam. Pronto, estava feito. Alguém precisava ser feliz.