quarta-feira, 12 de junho de 2013

Eu trago. Não do verbo trazer, mas do verbo tragar. Eu te trago. Te sugo.
Me sinto como mar, a lamber suas pernas e te puxar para mais perto. Sempre mais para perto.Te encharco. Se você deixa, te invado ao ponto de te privar do ar. Estrangulo. É sem propósito, é sem querer. É porque sou líquida. Sem forma. Escorrego. E meus olhos escorrem. E vou entranhando devagar.
Não é por vontade minha. Por isso temo pela vida dos que me vem, porque há sempre risco de morte. E risco de morrer. As vezes recuo, e recuo.
Ninguém consegue ver muito bem o que guardo no fundo. A maioria se satisfaz com a minha superfície. E gostam do meu toque. E de como os coloco para ninar. E da sensação de estar dentro. Se banham quando querem, o quanto querem e se vão. Simplesmente. Alguns me tem mais amor. Outros, mais admiração. Tem gente que tem medo. Tenho força, mas não sei usar. As vezes revolto, às vezes tranquilo. E mudo assim em pouco tempo. Sou um pela manhã, outro a tarde e mais um outro a noite.
E a ressaca é avalanche. Ninguém vem até mim nos dias de ressaca. Solidão salgada.
Sou muito, muito volumosa. Caudalosa porque me bifurco. E me perco tanto e tantas vezes. E acabo sempre perdendo um tanto de água por aí. Qualquer dia eu seco. Primeiro rio extinto.
E, por fim, cuspo todos para fora. Nada é capaz de permanecer em meio a tantas ondulações. E no final, só me resta a mim. Mar adentro.
 

terça-feira, 11 de junho de 2013

Oh passarinho, chegue mais perto! 
Te vejo aqui da varanda tão bonito. Se diverte pulando de um galho para o outro. 
Seu canto me faz um bem tão bom. E você parece sorrir. 
Mesmo que seu coração seja tão leve, e mesmo que eu esteja te vendo de tão longe, posso distinguir o bater do seu coração do bater das suas asas. Suas azinhas ligeiras e de um colorido mágico. Elas te levam para tão longe de mim... mas seu coração te traz de volta. Talvez te agrade essas árvores que eu plantei em volta de mim e só por elas que você venha. 
Ô passarinho, sou tão pesada e não sei voar como você. Fico tão presa aqui no chão e me sinto tão sozinha quando você não canta, Mas eu entendo. É porque não sou pessoa egoísta e quero que leve sua música por aí. Eu aguento a espera. 
Sabe passarinho, acho que fico tão velha enquanto te espero. E você está sempre com a mesma idade. Deve ser porque nunca me deixa te ver mais de perto. Que você tanto esconde de mim? Tem medo de que te ponha numa gaiola? Oh não pense tão mal de mim! Nunca poderia fazer isso com você. Se toda sua beleza vem do contraste de suas penas com o azul do céu e todo meu fascínio por você vem da sua liberdade. Eu gosto mais é de te ver voar e de ver sua leveza. Ela me ensina. Se pensa assim de mim é porque não entende o que eu sinto por você. É porque sente diferente por mim. Me entristece que pense assim e só queira voar para longe. Sei tão pouco sobre você. É que passarinho não fala. Mas mostra. E o que você me mostra eu guardo. Esses dias, te escapuliu uma peninha sabia? Eu guardei. Guardei porque ela me faz lembrar que você existe e está em algum lugar desse céu. E eu sei que enquanto estiver pelo céu você estará feliz. E eu te quero bem. Sei que enquanto houver céu haverá felicidade em você, passarinho. E a minha felicidade está em acordar todo dia e ver que, por mais um dia, o céu se abriu para que você voe.

domingo, 2 de junho de 2013

De manhã, minha vó veio me dar notícia de que tinha chorado. Havia morrido um dos rapazes que, vez ou outra, vinha entregar água aqui em casa. Ouvi todo o caso e as lamentações de minha vó com ar de paisagem. Nada posso concordar com ela. Vovó mal conhecia o homem. Lamentou por ele ter deixado dois filhos pequenos. Afirmou que o morto era um homem sorridente, que parecia "gostar tanto de viver" e que era ainda tão jovem. Como se o direito a morte só pudesse ser dado aos velhos. Felizmente, Deus é mais justo que os homens e permite que a morte chegue para qualquer um. Nada disse a minha vó, não podia fingir condolências, nem forçar uma tristeza que não sentia. O que senti foi pura inveja. Quisera eu poder ter a eternidade de uma morte antes dos 30. Não sei há quanto tempo eu esperava por morrer, não me lembro quando e nem como começou esse meu desejo. Minha idade, mesmo que pouca para alguns, já me era muito: muito custosa, muito pesada, muito densa, muito sofrida. Minha vida era desnecessária a mim. Talvez fosse necessária a alguém. Mas a mim, não era. Olhei o mundo cara-a-cara por diversas vezes e não gostei nada do que vi. Tenho muito mais motivos para não gostar da vida e para não criar boas expectativas sobre ela. Há, obviamente, uma beleza e um prazer em tudo, e não nego ter coisas boas para me recordar depois de morta. Talvez, chegue a sentir saudade. Mas, certamente, se pós morte me perguntarem por minha preferência, responderei que quero continuar em meu sono eterno. E se me mandarem de volta, acredito que vou nascer chorando mais do que chorei desta vez, se é que isso é possível. Chorei, sem descanso até os dois anos de idade. Não dormia e comia mal. É isso, á nasci sem vontade de nascer... Quando finalmente chegar minha hora, não tenho dúvidas de que estarei pronta. Mais do que isso, estarei radiante. O grande sonho se realizará. Não penso em suicídio. Mentira, vou reformular: não cometeria suicídio. Nem cometerei. É indigno, é desonesto. Há que esperar o prazo da validade, de boa vontade ou não. É um transtorno, enorme. Interminável espera. Entretanto, já não tenho outra alternativa. Não consigo querer outra coisa com tanto amor. Me afeiçoei a ideia de morrer, como faz um filho a mãe. Nada me parece ser mais prazeroso. Nenhuma outra opção parece capaz de me trazer tanta paz. Há muita dor na vida. Ninguém sabe a dor que eu sinto quando abro os olhos, todos os dias, e preciso me levantar. Na vida, posso dizer que tenho duas certezas: a de que vou morrer um dia; e a outra é a de que uma pessoa estará comigo até o dia em que eu morrer: eu mesma. A segunda certeza é o que me faz ansiar tanto pela primeira certeza. Sabendo que jamais conseguirei livrar-me de mim mesma e; que sou a causa de toda minha desgraça, logo, jamais poderei livrar-me de minha desgraça -  a não ser que me livre de mim mesma. É uma condenação: viver minha vida comigo mesma, até o fim. Só de falar, me pesam um pouco mais os ombros. Sorte tem esse moço. Se ele carregava apenas água nas costas ou o peso morto de uma vida que já não tinha, não sei. Só sei que ele já não tem mais corpo. E quem não tem corpo não carrega peso, flutua por não sofrer sob a lei da gravidade. E se regala por não ter que dar conta de estar vivo.