quarta-feira, 16 de novembro de 2022

 Eu acho que vou estragar tudo. Ou talvez você o faça. Não, mas de fato, creio que o farei antes. Com minha ansiedade, minha pressa, meu tesão. Avassalador. É que eu tenho um buraco tão grande aqui que cabe você. Inteiro. De pé, de frente, de lado, deitado. Atravessado, atravessando. E ainda sobra espaço. Sempre vai sobrar. Nunca serei preenchida. Mesmo quando transbordo e ainda que transborde. No íntimo - ao contrário do que se experimenta fora - onde transborda também há vazio. Dá pra ser cheio e sem fundo, ao mesmo tempo. E assim, o sou.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A começar por ele

   Eu vou te explicar e você vai me entender. A mim, é muito mais cara, nossa amizade. É onde me sinto especial: nas horas que você gasta perdendo tempo comigo. Veja, que aí me sinto diferenciada, destacada, singular. Quando sei que em meio a tudo e todos, você recorre a mim. Veja: sou escolhida. Eleita por ti -mesmo que por mérito de meu empenho e dedicação - aquela que você confia. Talvez eu esteja superestimando meu cargo. Mas deixa, vai. Eu preciso ter reconhecida importância. Não aceito não ter. Independente de onde seja, só quero que seja. E assim, posso seguir satisfeita; consigo abrir mão do resto, de todo resto que já quiz, de todo lugar que já almejei ter em você. Em troca de ter um lugar que é só meu (em ti). Nele eu vejo verdade, e vejo presença, te sinto presente. Nele, nós estamos. Estamos porque queremos, quando queremos. Abre-se um portal, a gente entra, só nós dois. É nosso esconderijo, nosso lugar secreto, de intimidade. Ninguém o sabe. É segredo nosso. Fica entre a gente.

  Eu que não te quero superficialmente e nunca quiz. Orgulha-me ter esse lugar nosso. Tenho a certeza de cada peça fundamental que eu pus para estruturá-lo e hoje ei-lo. Quando te escuto, leio que encontro verdade, verdade que se ausenta em seu beijo, em seu sexo. Sem intenções, sem performar - ou pelo menos, numa escala extraordinariamente menor. Por vezes criava uma narrativa e contexto que, em tocando meu corpo, teatralizava tocar minha alma, numa encenação amorosa-forçada desnecessária. Apenas por achar que eu cairia, que fosse o que eu gostasse de estar vivendo ali. Intencionava o inesquecível, quando na realidade, nada o é. Quando na realidade, eu estava ciente de toda engenhosidade por trás de cada gesto ou frase. Do teatro, só me envergonho por você. Gostaria de dizer "dispense". São tantas as ladainhas que conta sem roupa que de fato só te vejo nu quando está vestido. Falando de si próprio: é aqui que encontro sua nudez. Eu que te quero nu. Liso. No pelo. Na alma. E por isso, abri mão de insistir te querer onde você não se revela. Parei de endereçar a você lugares que você não pretendia estar, tampouco chegavam a te interessar.

   Eu quero de você o que ninguém mais conhece, ou tem. Longe de eu ter um papel de suma importância, destaque; sei-me completamente descartável: em segundo, terceiro ou quarto plano. O que não quer dizer-me inútil, ao contrário, sinto-me insubstituível, ímpar, indelegável. É de onde advém o sentir-me especial.

    Saber meu lugar, nem sempre é fácil, mas sei o quão necessário é. Se a princípio nele me pus por bom seno, e por vezes cai em contraditório por não o aceitar, hoje o tenho mais claro, calmo, condizente e confortável. E meu. Se ontem eu lutava por querer mais, hoje reluto quando você quer ultrapassar suas fronteiras e misturar as peças que eu tanto trabalhei para que se encaixassem harmonicamente. Gosto da harmonia. Gosto muito da harmonia. Gosto muito de poder ter harmonia aqui e saber que não precisei te abandonar. O que estamos fazendo com nós dois é o melhor que podemos fazer com nós dois. Não há um "mais" possível, não há um "melhor" possível. É bom saber estar no topo. Eu gosto, só gosto. E não (te) espero mais.

    

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Travessia

    É que eu me sinto como ponte. Estrada, avenida. Eu te sirvo para o percurso. Te levo de um lugar, a outro lugar. E então, você segue. Sinto-me mesmo, às vezes, como chão. Chão para que o outro passe por cima. Você vai e eu lá fico. 

  É difícil que ninguém fique, só passe. Sinto falta de ficar. Sinto falta de sair. Sinto falta. Falta. Tem quem (me) atravesse mais devagar. Tem quem acelere de repente. Tem quem passe tão depressa. Tem quem nem repare que eu estou (sou) ali.  Tem quem carregue tanta carga e tão pesada, e eu a sinto em mim, pesando. Só é certo que, por fim, todos passem. 

 Tanto vai e vem me deixam marcas, buracos, pedras soltas. E quando me chove, é ter que lidar com a lama que fica, e me transbordam os buracos. Não consigo me levantar. Chego acreditar em natureza, natureza humana, natureza ponte. Mas é só porque preciso acreditar, justificar, entender. Que mais fácil é crer que sou obra de fora e não de dentro; que há um criador que ao criar, escolheu para mim o lugar de ponte e não de banco de praça, ou de pracinha, ou de parquinho... Assim, isento-me. Isento-me da responsabilidade de ser o que sou. E se não consigo transmutar-me em outra estrutura, sigo buscando um melhor jeito de sê-lo. Acovardo-me em buscar aí, beleza. A beleza do ser-ponte. Romantizar é o instrumento que uso para não me mover. Como me é caro, minha estrutura. Aceito inteiramente minha condição e nos enfeites que dou, experimento alguma liberdade. Finjo que sou a dona, e agora sim, obra de dentro e não de fora. Acho meu jeito de ser ponte. Abraço minhas rachaduras e assumo que são minhas.  Mais que isso: encontro nas minhas rachaduras um propósito, sem ficar presa no lamento de sua existência. Abraço meu ser ponte. Agarro-me em ver nele uma beleza que logo hei dizer. E só assim consigo fazer as pazes, com o que sou, abandonar a vontade do que não posso ser - carrinho de pipoca?

  Pois me diga você: se não há beleza em ser responsável por dar alguém uma passagem tranquila e segura? E se não é mais importante o caminho que os fins? E se esse meu modo não consiste puramente em respeitar o direito de ir e vir? E se tão logo, aqueles que se vão, também retornarão? Uma, duas, ou quantas vezes mais? Porque ficaria presa na dor de que não permaneçam. Viro o jogo a meu favor. 

   Se pego na sua mão e contigo atravesso. Sinto que fico o tanto que durar o percurso e então, é isso. Aproveitar o percurso sabendo a finitude, saber dizer adeus. 

   Na travessia, tantas coisas, e você sempre terá boas lembranças, aprendizados. Se isso não for belo, questionarei a estética; se acaso não pense assim, duvidarei de seu bom gosto e senso.

     Viver no transitório parece incessante e sem descanso. Sem pausa. Não se pode repousar. É estar sempre em movimento. Perpétuo. Eis a sentença. Sinto-me, mesmo, esgotada. Nessa, acabo me esquecendo que é preciso fazer reparos em mim e cuidar das deformações. Bom seria se alguém viesse e me deixasse nova, inteira. Mas talvez eu seja grande demais para que um só consiga (já que eu mesma, olhando daqui, não consigo ver nem meu começo e tampouco meu fim). Mas talvez, eu seja totalmente funcional como sou. Mas talvez, a vida seja mesmo isso. Mas talvez, eu precise muito manter essas imperfeições. Mas talvez, não haja nada para além disso. Mas talvez, o que eu quero não exista. Mas talvez isso seja eu, e meu eu dependa de ser assim - remendo. Meu modo. Modo tão longo e breve, como uma ponte. Estrada, avenida.


"Eles passarão, eu passarinho" - Mario Quintana