quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Entre nuvens

Antes, queria dizer que esse texto não deu conta do que quiz dizer.


“Uma paixão é uma paixão”, ouvi num filme. Aliás, um filme muito bom, que muito recomendo: “O segredo dos seus olhos”. Bolei. Desconfiei. Fiquei matutando. O sentido era: uma paixão meu caro, dura para sempre, não tem jeito, é uma paixão. Não há como escapar, podem passar os anos, pode passar o que for, que se for paixão, fica.

Vi o filme duas vezes e foi um outro filme que vi hoje que me trouxe mais uma vez a idéia. Fico dividida. Tem dias que concordo com uma paixão assim, tem dias que não. Digamos que hoje estou no dia a favor do filme, mas antes vou dizer o que daí me incomoda. É essa coisa atemporal que a coisa ganha, imutável, eterno, intocável, impenetrável e determinante. Meio cachorro no cio sabe, instinto mesmo... E sou a favor da idéia de que tudo-muda-sempre-o-tempo-todo-no-mundo e as paixões não estariam fora disso, isentas, salvas a mudanças de opinião. Ora, se mudamos de gosto o tempo todo na vida... Essa paixão aí fica com cara de essência, sei lá. Isso me incomoda. Parece algo mais forte, que domina, um destino a que somos condenados. Só conseguimos ceder, pobres vacas-de-presépio.

No entanto, tenho que concordar um tanto quanto a contragosto com essa força. Tem coisas sim, que sou apaixonada. E que a vida toda me convocaram de uma forma singular. Fiquei pensando no movimento que tenho feito agora, a nível de vida. Nas duas vezes que vi o filme e mesmo depois, em vários momentos, fiquei me perguntando (com medo de descobrir e de confessar) qual seria minha paixão, ou quais seriam. No início achei que não tinha nenhuma. Me esforçando para pensar em algo que me dedico a anos e com séria dedicação, cheguei a paixão pela prática de atividades físicas. É realmente eu gosto e perco muitas coisas em prol dessa “paixão”. Tive medo de pensar nas minhas paixões porque via isso, como já disse como um certo aprisionamento e, de certa forma, minha dedicação nas academias da vida ilustram bem isso. Quase um vício mesmo. Quase, ainda bem!

Depois pensei em pessoas e aí que me deu mais medo. E fiquei evitando pensar. Tive medo de constatar que minha paixão seria uma pessoa. Acho que seria o pior dos modos, o mais difícil. Aí achei que essa tal paixão se parecia com cisma. Isso de cismar com alguém e ficar criando coisas na sua cabeça que na verdade não são, não existem (como se pudesse ser de outra forma – sempre são coisas da nossa cabeça, é ela que somos). Aí fiquei pensando que talvez não fossem coisas da minha cabeça, e não são. Então estaria irremediavelmente ligada a essa pessoa? Complicado. Tenho tentado entender, não ficando numa de refutar, de negar, de querer ir contra. Inventando outras formas de me haver com isso, mas acho que é a paixão que mais independe da minha vontade e se já me libertei de muitas resistências com relação a ela, vejo que o outro lado (a própria paixão, que nesse caso responde por ela mesma) se mantém muito nublada. Acabo turvada também, tenho dias de chuvas, mas o sol sempre vem e a certeza disso me conforta, acalma. As vezes isso não é suficiente e me descabelo. Aprendo a esperar, e caminho a passos de formiga.

Pensei também na minha família, naquela Barra do Piraí a que eu sempre volto e preciso ter alguma proximidade. Apesar dos pesares, tenho muitas paixões naquele lugar. É minha Terra do nunca, sempre.

E voltei a pesar no movimento de vida em que me encontro. E o que faço? Exatamente correndo atrás das minhas paixões, do que me faz pulsar. E aí, ao contrário da idéia que fiz da paixão do filme, o que sinto é que essas paixões me libertam. Me deixam tão livre, tão solta, tão feliz (tão feliz!). Vou longe. Aliás, vou é nada, nada longe, ao contrário! Fico ali, só ali, nada mais do que ali. E como isso é maravilhoso.

Cores. Definitivamente cores. Sou apaixonada por cores, por luz e sombra, por contornos, formas. Sensações. Cores para mim são sensações. Tão fortes que doem no peito e eu falo chorando porque a boca emudece. Acho que um dia vou conseguir ter acesso a outras cores, porque acho que hão muitas mais. Às vezes quero mesmo conhecê-las, conhecer uma cor nova, ter essa benção, essa maravilha. Acessar uma nova cor, não tom, cor mesmo. Que necessite que a demos um outro nome porque os que temos já nomeiam outras coisas que não ela. Cores.

Descobrindo e me havendo com minhas paixões, é aí que estou. Eu que quase havia me esquecido de onde estava, me achei de novo, por fim. Apaixonada, viva.

domingo, 19 de setembro de 2010

Lilás

Todos os dias ele saía com os anéis dela e minha correntinha no pulso. Jamais saberia a verdade. Nunca saberia que eu e ela sabíamos de nossa mútua existência na vida dele. Aqueles anéis nunca me enganaram e minha pulseira nunca tinha passado desapercebida aos olhos de Débora.
Débora e eu nos conhecemos no casamento de Maria Lúcia e Gustavo. Não era tão incrível que numa cidade de pouco mais de 120 mil habitantes se tenha amigos em comum. Getúlio inventou uma desculpa para mim e para Débora e não foi ao casamento. Preferiu fazer desfeita aos nossos amigos de bairro a ser "descoberto" como bígamo. Mal sabia ele que não se descobre o que já se sabe, o que já sabíamos. Seria antes, uma constatação. A essa altura eu apenas esperava que um dia ele me contasse. Ou que ela me contasse: a outra.
Débora era madrinha de Maria Lúcia e Gustavo. Estava belíssima com seus cabelos de cachos longos, presos com um enfeite de rosas metálico no alto da cabeça. Estavam arrumados de modo que apenas uma parte se prendia e outra ficava solta, expondo os cachos castanhos que chegavam um pouco abaixo dos ombros. O vestido era lilás e levemente decotado. Mostrava sem ser extravagante. O cordão e os brincos também era singelos mas precisos. Quem a olhava entendia o que aquela mulher queria. Acompanhei a toda cerimônia um pouco chateada de estar sozinha, sem Getúlio. Que fazer se a sogra tinha resolvido ter crise renal logo hoje? Até que parecia de propósito para não deixar Getúlio entrar comigo numa igreja. Ela nunca gostou muito de mim. Me ofereci para ficar com ele mas ele achou que seria muita desfeita aos noivos e eu já estava pronta, maquiada e de vestido novo quando ele chegou esbaforido da cozinha dizendo que o padrastro tinha ligado as pressas por conta da crise da mãe. Aceitei, mesmo porque não podia fazer muita coisa por dona Mersinha e sei que ela não fazia menor questão da minha presença.
Fui para a igreja. Como de costume me emocionei. Sempre fui uma pessoa sensível a felicidade dos outros, à promessa que é um casamento. Uma promessa que eu, ao contrário de Maria Lúcia e Gustavo, tive sem testemunhas. Eu e Getúlio não tinhamos casado na igreja nem em lugar nenhum. Um belo dia resolvemos morar junto e após uns meses amadurecendo a idéia, acabamos numa casa na rua Quinze, vizinhos do casal que hoje eu via no altar. Tinha ficado de ligar para Getúlio depois da cerimônia para saber da saúde da mãe dele. E assim tentei, sai da porta da igreja e procurei um lugar com sinal para o celular e pouco barulho para os meus ouvidos. A igreja tinha um jardim bonito e um pequeno parquinho para crianças atrás de uma capelinha que era a construção original da igreja de Santa Rita. Quando proporam reforma, decidiram ao invés disso, manter a antiga capelinha e construir uma nova. Manteve-se a nostálgica e humilde construção à sombra da vistosa construção que assumiu lugar central. Foi perto daquela relíquia, já caindo aos pedaços que achei sinal e um banquinho. Sentei-me e dei uma olhada a volta enquanto a ligação era completada. Inútil, só dava ocupado. Tentei mais duas vezes seguidas e nada. Decidi esperar um pouquinho. Vi que uma mulher corria na direção da capelinha. Vi, pelo vestido que era a madrinha bonita que até então não sabia que era a Dédora. Ela vinha correndo com jeito apesar do mega salta que ficou a vista por ela puxar a barra do vestido com uma das mãos. Na outra mão segurava o celular no ouvido. Vinha com uma cara tensa. Parou no meio do caminho, soltou a barra do vestido e ao longe via a conversa dela. Tentei mais uma vez ligar para Getúlio, mas linha permanecia ocupada. Não sabia nem para que hospital tinham levado minha sogra, não tinha como ir até eles. Estava aborrecida. Decidi ir me despidir dos noivos, achei melhor não ir a festa. Fui andando de volta para o alvoroço da porta da igeja filial, passei pela madrinha lilás e a ouvi dizendo que "então ia para festa". Fiquei pensando se não seria bom ir a festa também. Quando cheguei na porta da igreja tinha muita gente e não conseguia encontar os noivos, quando perguntei para um dos convidados me avisaram que eles já tinham ido para o clube. Fui saindo da igreja, atravessei a rua. Parei na calçada em busca de um táxi. Tentei ligar para Getúlio novamente, dessa vez ele atendeu. "Oi lilinha, desculpa, tava com Geraldinho no telefone". Geraldinho era um colega de trabalho que eu nunca tinha visto, mas que eu sabia quetinha uma ligação forte com Getúlio. Geraldinho era caderante e por isso não gostava de sair muito e seus passeios se limitavam ao trabalho. Getúlio me contou que ficaria a noite toda no hospital. Desliguei o telefone, pensei por uns instantes. Passou um taxi vazio, fiz sinal, ele parou, eu entrei: "Clube bandeirantes, por favor".
A decoração do clube estava belíssima. A moça na porta me direcionou a minha mesa. Tinha um lugar para mim e outro para Getúlio, tinham me posto numa mesa com mais dois casais do bairro. A mesa estava bem a frente do palco, proxima a mesa dos parentes e amigos mais chegados da noiva. O papo estava meio chato e todo mundo que me via indagava o porquê de eu estar sozinha e eu já estava de saco cheio de repetir a história de dona Mersinha. Por fim me limitava a dizer: "crise renal". O jantar estava bom, as sobremesas foram fartas. Fui ficando chateada e resolvi me entregar aos drinks. Tinha um telão no palco do clube que num certo momento começou a contar a história dos recém casados. Maria e Gustavo tinham estudado juntos desde pequenos. E começaram as fotos da escola. Tinham umas fotos bem engraçadas. Vi que a madrinha lilás estava numa mesa próxima a minha com um grupinho que ia zuando as fotos, riam e comentavam muito e alto. Imaginei que fossem os amigos que iam aparecendo nas fotos e que se conheciam de longa data. Ao longo das fotos fui percebendo sempre a presença de uma menina junto a Maria. Reconheci que era a madrinha lilás. As fotos foram avançando e surgindo fotos do casal já adolescente, já na faculdade. Fui vendo que a madrinha lilás sempre estava por perto. Aquele rosto me parecia familiar. Tentava forçar na cabeça da onde poderia ser. Olhava para ela na mesa a procura de pistas. Ela ria muito, estava cercada de homens e tinha uma outra madrinha com ela. Tinha os traços finos, uma sombrancela em desenhada e um nariz que apesar de comprido, caía bem em seu rosto.
As fotos foram seguindo. Derrepente uma em que aparecem Maria e gustavo abraçados fazendo pose ao lado de mais três pessoas. Empalideci. Reconheci Getúlio de cabelão ao lado da madrinha lilás. Me pareceu uma festinha da época de faculdade. Sabia que tinham estudado na mesma faculdade, mas não sei porque achei estranho. Acho que foi ciúmues da bela madrinha, vi que ela se escangalhou de rir quando paraceu aquela foto. Depois achei bobagem. Getúlio e Gustavo não tinham feito o mesmo curso, Getúlio era médico e Gustavo advogado. Acho que foi por isso que estranhei ao vê-los compondo a mesma foto. Resolvi achar normal, era uma faculdade particular, poucos alunos, normal que frequentassem as mesmas festas. Confesso que não enguli a madrinha e o fato do meu marido a conhecer me causava certo desconforto. "Que bobagem, ele nem sonhava em me conhecer, gente quanta tolice, sou mesmo muito idiota, ai".
Resolvi beber mais drinks. A festa estava chata. Os pais dos casados fizeram um discurso interminável depois da homenagem do telão. Já estava sonolenta quando a madrinha lilás entrou. A mesa que ela estava começou a assobiar e gritar "gostosa", "vai Débora", "lindaaa". Percebi que as pessoas da mesa tinham grande probabilidade de vômitos a uma hora. O alvoroço me deu uma acordada. Ela falou pouco e fez umas piadas. O casal agradeceu teve toda aquela lenga lenga de brindarem, e não sei o que, partirem o bolo e iniciou-se o baile. Era por volta de meia noite. Vi que as pessoas não iam durar muito tempo, uns pelo nível alcoólico outros pelo cansaço, outros pela idade avançada e mais outros pela pouca idade. Ficariam os guerreiros. Como sabia que nada me esperava em casa, fui ficando. Fumei muito. Os casais que me acompanhavam à mesa foram me abandonando aos poucos para a pista de dança. Não ousei dançar. Fiquei acompanhando a Débora de longe. A bebida me alterava os pensamentos e fiquei com raiva. Raiva do jeito solto dela. Uma oferecida. Ela e a noiva dançaram muito a noite toda. Já era quase três da madrugada quando resolvi comer uns salgadinhos para ir embora. Só haviam umas poucas pessoas na festa. Enquanto montava o prato, Maria Lúcia e Débora passaram por mim esbaforidas pedindo água aos graçons. Sentia o reboliço das duas ás minhas costas. "Marília". Reconheci a voz de Maria, me virei. "Oi lindinha". Estavam visivelmente muito bêbadas. "Oi Maria, olha a festa está linda, tudo muito gostoso, estou muito feliz por vc e Gustavo" disse tentando ser educada e me livrar delas. Maria riu, eu não entendi nada. Vendo o riso de Maria, Débora riu também. Esatavm as duas de chinelo, descabeladas, maquiagens borradas, visivelmente colando de suor. O gançon chegou com as taças de águas. Pareciam dois camelos as duas. Fiquei parada com o prato de salgadinhos esfriando na mão olhando a cena patética das duas. Estava meio sem paciência e queria sair logo dali. Por fim Maria me perguntou se tinha cigarros, disse que estavam na bolsa e que a bolsa estava encima da mesa. Elas me acompanharam até a mesa. Se jogaram exaltas nas cadeiras já esvaziadas dos vizinhos que me acompanhavam. Maria recostou na cadeira e me acompanhava buscar os cigarros na bolsa, Débora abaixou a cabeça e deitou-a por cima de um dos braços apoiados na mesa. Maria riu e sacudia Débora enquanto pegava um cigarro e eu acendi para ela. Deu uma tragada e enquanto bufafa fumaça falava "acorda porra, é meu casamento, você tem que aguentar comigo caralho, acorda diaba". E comçou a falar comigo um papo de casamento e ainda sacudindo Débora: "dá um cigarro pra ela que ela acorda rapidinho". Débora levantou a cabeça e riu e empurrou Maria Lúcia: "Mas é chata mesmo, cacete... não cansou de mim não criatura? Quando eu morrer, vou direto pro céu, Oito anos aguentando você Marilu, puta-que-pariu". E rindo estendeu a mão para pegar comigo um cigarro. Paralisei, ela usava a minha pulseira. A pulseira de prata que ganhei da minha avó quando fiz quinze anos e que estava com Getúlio. Era uma correntinha simples, fininha que ele adorava usar. Notando que eu congelei com o cigarro na mão e os olhos fixos na pulseira, Dédora puxou o cigarro dos meus dedos, pegou meu isqueiro de cima da mesa, recostou na cadeira e acendeu o cigarro me olhando com uma cara maliciosa. Pronto. Era ela. A outra estava finalmente diante dos meus olhos e era rara. Os olhos doces e a boca sedenta, fumava cigarro como uma francesa, me olhava com gosto. Senti que percorria meu corpo com os olhos, me apreciava. Maria Lúcia viajava no cigarro, parecia que estava fumando maconha. Gustavo chegou deu um beijo em Maria, lhe falou alguma coisa no ouvido, ela riu baixinho. Ele pediu licença a nós para levar a esposa. Eu sorri sem nada dizer. Débora me fitava. Ficamos nós duas. Ela apagou o cigarro antes que ele terminasse: "me aconpanha ao banheiro, preciso ver minha cara". Fomos, Débora ia na minha frente andando meio torta. Tivemos que atravessar a pista de dança, só havia um casal se agarrando. No me encostei numa pilastra no meio do banheiro em frente ao espelho da pia, logo atrás dela. Ela diante do espelho apoiou a bolsa na pia, se olhou, lavou o rosto, enxugou os olhos borrados com papel higiênico. Abriu a bolsa e tirou dela um baton numa cor marron muito feia. Passou na boca me olhando pelo espelho. "Gosto do seu cabelo", disse ela. Esfregou um lábio no outro, guardou o batou se virou para mim apoiada na pia me encarando. Não desviei o olhar. Ela se aproximou de mim, passou a mão entre os meus cabelos. Eu fui ficando gelada, ela olhava minha boca, passou os dedos nos meus lábios e me beijou. Eu tremia toda. Correspondi. Ela me apertava. Me entreguei a ela. "Me acompanha até minha casa, pegamos um taxi, não é muito longe." sussurou Débora, eu estava ofegante.
Fomos para a casa dela, estava muito confusa, mas sabia que queria ir com ela. Passamos a noite inteira juntas. Amei profundamente aquela mulher e entendi toda a situação. Por volta das seis da manhã, disse que precisava ir embora. Ela aproximou o rosto do meu, passou a mão nos meus cabelos e disse em tom suave: "você entende? heim, você entende? Somos um só. Somos todos um só. Não guarde mágoas".

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tananã

Anelise fez tudo como de costume. O relógio despertou as 6:30 e ela ficou na cama até as sete. Então, levantou-se, foi ao banheiro, olhou a cara e urinou. Voltou no quarto pegou o celular. Ligou o celular e o colocou na mesa da cozinha. Se pôs a lavar a louça do jantar. Começou pelo copo. "Tananã", uma mensagem. E ensaboava o copo. "Tananã", duas mensagens. Começou a enxaguar o copo. "Tananã", três mensagens. Ainda enxaguando o copo. "Tananã", quarta mensagem. Examinando o copo lavado percebeu uma sujeira e passou a esponja em cima. "Tananã", quinta mensagem. Enxaguando novamente o copo. "Tananã", sexta mensagem. Examinando a provável permanência da sujeira. "Tananã", sétima mesagem. Constantando o copo limpo. "Ah o copo limpo!" e ela o olhava com ar de satisfeita. Mas então muda de expressão se assusta: "pera aí: sete mensagens? SETE MENSAGENS? Oh meu Deus, oh meu Deus!". Num salto pega o celular e confere: sete mensagens. Anelise deixa o copo cair. Enquanto os pedaços do vidro ainda correm para debaixo da geladeira e do fogão, ela já está no quarto aflita e se vestindo depressa. "Rogério, Rogério".
Anelise conhecia Rogério a doze anos, a oito tinham rompido o namoro e a cinco Rogério tinha adquirido toc (transtorno obscessivo compulsivo). Desses cinco a tres eles tinham se tornado bons amigos e a dois Rogério mandava oito mensagens diária, pela manha para Anelise. Rogério considerava "oito" seu número de sorte: o dia em que nasceu sua mãe e ele também, o mês que conseguira ir morar sozinho,  a idade em que tinha sido mais feliz porque tinha ganhado um livro que tinha mudado sua vida. O título desse livro Rogério não contava a ninguém, porque não queria que ninguém mais no mundo soubesse o que ele sabia. Ele sabia que muitas outras pessoas haviam lido esse livro além dele, mas ninguém tinha percebido o enigma que havia na oitava linha da oitava página. Caso mais alguém no mundo tivesse percebido, ele saberia. Uma permutação simples da primeira letra de cada uma das dezesseis (duas vezes oito) palavras dessa linha, ia formando um código secreto que havia mudado o que ele entendia por "mundo" para sempre.
 Tudo era oito: o número de dias que se hospedava num lugar quando viajava, o número de vezes que tocava uma campainha, o número de vezes que piscava os olhos antes de dormir, a quantidade de torradas que comia no café da manhã e de mensagens que mandava para Anelise todos os dias. Todas as mensagens era iguais: bom dia! Rogério achava que Anelise precisava de oito mensagens para ser feliz e que Deus o tinha incubido da felicidade dela. Eles haviam se conhecido numa sala de espera por atendimento psicológico. Os psiquiatras diziam que Anelise tinha depressão maior, quadro de ansiedade, dentre outros blábláblás e que Rogério tinha o tal transtorno. Há dois anos que Rogério tinha sacado que Anelise precisava de seus oito bom dias para não cair em depressão novamente, tarefa que ele cumpria com gosto e disciplina. Nunca nesses dois anos ele tinha falhado ou se esquecido. As oito mensagens chegavam fizesse chuva, frio, sol; ele estando doente ou são, havendo catástrofe ou o que fosse.
Anelise o achava maluquinho, mas tinha um enorme carinho por ele e respeitava sua teoria, aliás, não tinha mal nenhum, se isso era importante para ele, para ela não havia problema. Achava bonitinho que ele se importasse com ela. Na verdade Rogério se importava antes com ele e mandava mais as mensagens por medo de ser punido pelo Deus, ou pelo fato de que não cumprindo sua tarefa, se sentisse culpado pela recaída que Anelise teria obrigatóriamente perante a doença. Mas o fato é que naquele dia, só haviam chegado sete mensagens. Sete. Algo estava errado.
Mil coisas passavam na cabeça de anelise enquanto ela se vestia apressadamente. Rogério morava sozinho numa rua perigosa do centro da cidade. Anelise já havia o alertado várias vezes sobre assaltantes e sempre o pedia para tomar cuidado, já que se mudar era inviável. Já havia um tempo que Rogério vinha percebendo que um certo homem o vigiava, sempre falava dele para Anelise. O fato é que ela nunca acreditou muito nele, achava que era mais uma fantasia da cabeça dele. Claro que quando ele contava, ela fingia dar maior atenção e demonstrava uma preocupação enorme, sempre dizendo a ele que o melhor era se mudar logo. "Você sabe que não posso Ane, preciso esperar completar oito anos de moradia para que possa me mudar.". Anelise achava graça e ria escondido pelo telefone. Sabia que a amizade dos dois só existia pela confiança que um tinha no outro e pelo fato de que se compreendiam e se respeitavam.
 Agora, Anelise se sentia culpada por não ter levado Rogério tão a sério e as lágrimas rolavam de seus olhos. Não escovou os dentes, não penteou o cabelo, pôs uma meia furada e o casaco do avesso. Foi atrás do homicida. Pegou um taxi até o prédio de Rogério, pediu que o taxista esperasse, teve medo de que precisasse sair correndo do assassino. Só aí que ela pensou que o assassino ainda poderia estar no apartamento. Perguntou por Rogério ao porteiro, mas ele disse que estava entrando agora no turno e que o outro porteiro tinha acabado de sair e que não sabia nada do Seu Rogério não senhora. Anelise respirou fundo. Preferiu ir de escadas para fazer menos barulho. Já tinha ido longe demais, por mais que estivesse com medo, não podia deixar seu amigo sozinho. Talvez ele ainda estivesse vivo, e esperatemente mandou apenas sete mensagens para que Anelise percebesse e viesse socorre-lo. Anelise suava frio, já se arrependia de não ter pego elevador: Rogério morava no oitavo andar, claro. Por um lado foi bom porque estava tendo tempo de pensar. Estava começando a medrar e chorava de nervoso. A tensão estava tomando conta dela, snetia seu corpo tremer e o suor descer gelado. O estômago doía, a boa ficou seca, a respiração mais e mais ofegante a cada lance de escada.
Estava com frio, pensava em Rogério, somente em Rogério. No dia em que haviam se visto pela primeira vez, de como ele a sempre fez rir, dos anos que passaram juntos, de quando conheceu a mãe dele e como ele era feliz ouvindo as oito badaladas que a igreja perto da casa de sua mãe dava as oito horas em ponto. Lembrou-se de tudo e também dos momentos ruins, e começou a se sentir mal por rir de Rogério escondido. E chorou, teve que parar no oitavo andar para chorar. A cabeça confusa, não sabia que fazer. Ficou um bom tempo ali no sexto andar. Parou de chorar, ficou um bom tempo contemplando o nada e se preparando para o pior. Tomou força e subiu os dois andares finais. Já no oitavo andar foi andando até ver reluzir na luz do dia o número "808"  na porta. Que faria? Que faria? Foi quando ouviu o elevador, ela estava de frente para elea alguns poucos metros de distância, viu quando ele parou no andar que ela estava. Estava atônita, sem palavras, sem reação. A porta do elevador se abriu e surge Rogério suado com uma sacolinha na mão. "Minha amiga, que faz aqui!? Anelise que houve? Está pálida, está chorando." Ele ia andando apressado até ela que o olhava como qem via um fantasma. Ele a segurou forte pelo braço e olhou dentro dos olhos e antes que perguntasse o que havia ela disse quase sussurando: "sete mensagens". Ele estatelou os olhos, ficou nervoso. "Eu sei, eu sei, me perdoe. Ai meu Deus... meus créditos! Meus créditos acabaram, demorei até consegui achar um cartão da Oi, não tinha na banca aqui da calçada, nem na padaria aqui da frente, tive que andar um bocado, não sei que houve nessa cidade, só fui achar muito lá embaixo perto do bar do Jorge... mas eu mandei a mensagem! Assim que consegui o cartão, você não recebeu?".

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A minha gana é alta. Eu quero o impensável do pensamento. Eis o meu constante exercício.

sábado, 7 de agosto de 2010

Andrade Neves

Hoje me aconteceu algo que me fez querer contar. Como não sabia para quem, decido não contar para ninguém. Estava vindo da análise (da minha análise), pela rua que passo pelo menos duas vezes por dia. Já morei nessa rua por uns oito meses e há quase dois anos moro numa rua que a cruza. Gosto muito dessa rua e nem sei porquê, ela é não tem nada demais, talvez por não ser muito movimentada e já ser familiar, já fazer parte do meu cotidiano. Além de tudo eu a acho bonita, talvez pela simplicidade. Muita gente diz que é perigosa, mas nunca tinha me acontecido nada nela até hoje. Fui assaltada. Mas o assaltante não levou nada. Pode parecer cômico. Um moleque que devia ser mais novo que eu me encurralou na calçada: de um lado ele de bicicleta e do outro um caminhão, que não me deixava sair da calçada para a rua. "Perdeu, perdeu". Eu como sempre, estava distraída e quando vi aquele menino se aproximando de bicicleta, vindo na minha direção (na verdade, me atropelando), achei que ele ia falar alguma gracinha e passar. Que nada. "Perdeu, perdeu" . Eu tentei dar a volta pela frente do caminhão, mas ele segurou minha mão. "E se tentar correr, vai tomar", nessa hora já tinha soltado minha mão e colocou a mão na cintura como que me dizendo que tinha uma arma na bermuda. Taí, pensei, mentira. Primeiro blefe. "Me passa o cordão". Eu franzi a testa e sacudindo a cabeça disse com má vontade, como que está de saco cheio, aborrecida, entediada:


- Isso aqui nem é ouro, isso aqui é bijuteria meu filho.

-Né de ouro não?

- Isso aqui é ouro?

Falei tirando sarro mesmo, tipo "fala sério!". Segundo blefe: o cordão não era de ouro, mas um dos três pingentes era, uma figa que ganhei da minha mãe quando nasci.

- Hum... passa o telefone então...

- Queee telefone, que telefone, to saindo academia.

Terceiro blefe: tinham quatro celulares na minha mochila, um estragado, um com visor queimado e dois funcionando perfeitamente bem. Não estava com roupa de academia, tinha ido cedo para a academia, tomado banho lá, ido para minha análise e por fim, estava indo para casa.

- Tá, então vai... mas ohhh, se não viu nada...

Eu sai atordoada, não sabia se ria, ri. Saí pensando: "vê lá se eu ia perder minha figuinha assim...". Como tudo aquilo tinha sido inesperado, como se eu não estivesse afim de ser assaltada: "Ah não, hoje não!". Fiquei espantada comigo mesma. Muito espantada. Eu, não só negociei, como tirei uma com a cara do cara. Jesus! Me lembrei de uma vez que reagi assim. Ainda morava em Barra do Piraí, estava no terceiro ano do ensino médio e ia a pé e volatva apé para a escola. Minha pagava a passagem de volta, mas eu preferia economizar. O fato é que eu sempre encontrava com um cara bêbado de manha indo na minha direção contrária e que sempre me cantava. "Você é o amor da minha vida". Achava que era com todo mundo, até que um dia percebi que era pessoal: "eu te vejo passar todo dia, você é linda". Opa! O bêbado marca minha cara sim!

Minha casa é numa subida e antes da subida, na calçada da rua tem um orelhão. Nessa época a conta de telefone lá de casa andou vindo alta e eu tinha comprado um cartão de telefone para ligar desse orelhão que é pertinho. Estava eu no orelhão, tentando ligar quando sinto uma mão no meu ombro, sorri achando que era algum conhecido. Quando olhei para o lado era o bebum.

-Você é o amor da minha vida, casa comigo

-Sai daqui, sai, sai, sai fora, mete o pé... anda, mete o pé... vaza, vaza!

O bebâdo que estava bêbado tentou argumentar, falou algumas coisas e tinha um cara com ele que me fez o favor de convevê-lo a ir embora. Puta-que-pariu! É: PUTA-QUE-PARIU.

Foi a mesma sensação, fui para casa suando, morrendo de medo e assustada comigo mesma. Que isso! Expulsei o cara, eu tô maluca. Gente e se tivesse acontecido isso,k aquilo, aquilo outro...

Hoje também fiquei pensando nos milhões de coisas que poderia ter me acontecido. Cheguei em casa suando, pensei em ligar para casa e contar a minha vó. Ela ia reagir bem e depois meu tio ia encher a cabeça dela e ela me ligaria preocupada dizendo para eu não fazer mais isso, que é muito perigoso e que dessa vez eu tinha dado sorte e não se deve reagir a assaltos e blá, blá, blá. Não liguei, nem vou.

Fiquei pensando nisso o dia todo e já ri várias vezes. Só que estou com medo. Medo. Também tive medo do bêbado me encontrar de novo depois do dia do orelhão. Me encontrou e nada aconteceu.

Tive um certo desejo de encontrar o moleque de novo, ele passou por mim mais a frente no caminho, contornou de bicicleta e entrou numa outra rua. Nessa hora estava de cabeça baixa com um leve sorriso e quando o vi, engoli o sorriso com medo de que ele desconfiasse que estava blefando. Tinha que voltar a UFF a tarde e fui por fora, não passei pela rua do assalto, fiquei com medo de encontrar o tal. Mas fiquei com vontade de conhecer aquela pessoa, de ouvir sua história ou o que ele tem para dizer. Acho que é culpa da psicologia. É, eu tive vontade de atendê-lo e estou com medo de fazer o convite se o encontrar de novo. Não dá para saber como vou reagir. Fiquei imaginando como seria, atender no spa um "assaltante", vulgo "pivete".

Sei que apesar do medo acho um desaforo não passar pela rua que tanto gosto por causa desse tipo de coisa. É como se ele estivesse roubando a rua de mim, rua que eu acho que é mais minha do que dele. Sei também que a televisão não tem feito bem a esse moleque, parece que aprendeu assaltar assim. Cheio de clichês, de frases prontas, parecia tudo uma novela ou um filme de quinta.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Confesso estar devagar, mas pensei em tantos textos...  Sei que ainda poderia os escrever, mas perdi a emoção deles. E coisas sem emoção já não me interessam.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Quando Júlio pediu para voltarmos, disse assim:

-Os nomes para mim não importam, importa mais o lugar em que me põem. Você me pede que te chame de Lito, mas Lito só existe enquanto existe Nãnã e Nãnã hoje, não existe mais. Agora, tem Fernanda, tem Nanda que é como me chama minha mãe, tem Dinha que é como me chamam minhas amigas. Nãnã tem, mas no passado. Tem, quando tinha o que a gente era. Só enquanto pensamos nela, é que ela existe.  E isso somente enquanto abstração e não mais em concretude tal que possas abraçá-la para matar a saudade que dela tens. Somos outros agora. Todas as suas palavras, de que anseia por ter contigo aquela menina, te digo que também poderia eu sentir o mesmo por ela, porque ela já não sou eu. Nem é parte de mim enquanto propriedade individual, e há tanto dela em mim quanto em ti. Porque ela era fruto nosso. Ela foi um momento que fui e que ficou lá, junto com o momento. Hoje olhando para ela, a torno diferente. E você também a modifica e não é daquela que sente falta, mas dessa que em mim busca, que em mim cobra correspondência. É por essa que você inventou que choras e não percebe que ela é diferente da outra. Da mesma forma que não percebe que eu  não poderia ser nem aquela que você amou, nem essa que aqui está a me pedir.  Não dá para voltarmos a ser o que um dia fomos e se me pede isso, sinto não poder fazer nada por ti. Se ao invés disso me pedisse para invertarmos outro algo junto, eu poderia, mas voltar já não posso, não podemos. Aquela menina não está mais vivendo e se acaso tivesse me pedido não para tê-la novamente, mas sim para ir junto comigo construindo isso que agora me vai sendo possível, poderia te dar saciedade.  Mas, essa sede que me mostra já não posso dar fim. É que me pede tudo que já não tenho mais e despreza o que poderia conhecer, então, não vejo mais como Nãnã e Lito virarem outra coisa, para além de Fernanda e Júlio, não nesse instante em que só consegue me ver Nãnã e eu te ver Júlio. Em tempo diferentes não dá para se encontrar...

Vi quando ele levou de volta ao bolso uma carta que reconheci como presente meu pelo papel. Já não tinha provas para me dar em prol de uma causa perdida. Tudo aquilo me dóia tanto quanto a ele doía, mas nem disse isso a ele, preferi deixar que ele fosse... Eu entendia o quanto é enorme o sofrimento da saudade de algo que já não há jeito de pôr fim, porque não há como possuir. Não, por impedimento que ainda permita esperaça de um dia acabar, mas pela próprio fato da coisa não haver no mundo.

"O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou"

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sexta- feira Santa

Pode parecer pretensão. E, na verdade é. Joana achava que Vitor tinha ficado muito chato sem ela. Fazia dois anos e dois meses que eles tinham terminado e ela o acompanhava a distância. Hoje em dia, com a internet, podemos espiar quem a gente quizer, todo mundo acabou capturado por alguma artimanha virtual. De vez em quando ela o fuçava. E tudo que ela encontrava era uma versão de outra coisa. É, como se ele houvesse se tornado uma versão de si mesmo e mentisse, mentisse muito sobre quem era. Inventasse histórias e mais histórias de si mesmo e para si mesmo, só para não aparecer, para não se mostrar, se proteger do mundo, das mulheres. Era claro que Vitor não queria atrair mulheres, não com todo aquele papo chato de futebol, política e baboseiras inúteis que ninguém quer saber de fato. Tudo bem que o que todo mundo quer saber, a gente não deve mostar para criar um certo mistério e dispertar o anseio pla descoberta, aguçar a curiosidade. Mas convenhamos que esse papinho furado repelia, não instigava. "Será que ainda me ama?". E empalideceu a essa revelação. "É isso, é obvio, ainda é apaixonado por mim!", foi a resposta que encontrou para toda chatisse do ex-namorado. "Por isso toda essa caricatura, quer afastar a todas porque no fundo me quer! Coitado, e não deve estar com coragem de dizer...". Não depois do grande fim.
Joana ficou algumas noites pensando em como contar a Vitor que ela já sabia e poupá-lo de todo constrangimento de ter de lhe contar a verdade. Decidiu ligar para Vitor para marcar uma saída. Ela sentiu mesmo aquilo como uma obrigação, o pobre estava mesmo precisando de ajuda, precisava mesmo que Joana voltasse a dar a ele alegria de viver. Morar na internet não é vida. Ela ficava imaginando que ele devia passar o fim de semana inteiro dormindo, twittando e vendo filme pornô fazendo exatamente o que estão pensando. Pobre Vitor! Certamente precisava de uma mulher! Todos aqueles textos e discursos estavam precisando de um pouco de cor de rosa, todos fedendo a casa suja e com aspecto de barba por fazer. E não precisava de uma mulher qualquer, senão já teria conseguido, era dela que ele precisava, de Joana, era porque sentia falta dela e somente dela. Encontar Vitor era mais do que um favor pelos anos felizes que tiveram, era sua missão. Questão mesmo de acertar as contas com Deus.
Respirou fundo como se recebesse a benção e ligou. Vitor pareceu surpreso, mas aceitou encontrá-la, achou que a coitada estava precisando tirar o atraso. Marcaram para sexta. Ela encheu a alma com a satisfação dos justos, dos bons de coração, dos piedosos. Faria o que fosse possível em nome da caridade. Era muito prestativa a Joana, jamais deixaria alguém assim, na mão.

sábado, 3 de abril de 2010

Se dizem que a gente é que atrai as coisas, como é possível culpar o destino por nos fazer lembrar de alguém?

segunda-feira, 15 de março de 2010

E se eu te disser que o que eu faço não tem nome, só tem cor, só tem brilho, só tem tom.
E se eu te disser que sou inominável, escapo de onde me emolduram, escorro de onde me colocam.
E seu eu te disser que sou agora, depois não sei e amanhã serei mais.
Terás que me revirar dos pés a cabeça a todo momento, e por todos os dias (até o fim de minha ou de sua vida),, para me conhecer, saber minhas causas, saber o que causa, o que me passa. Terá que ter fôlego para experimentar o que me torno a cada instante. É trabalho incessante, sem fim. Por outro lado, assim te oferecerei toda gaça de quem está está sempre descobrindo, sempre deslumbrado ou assustado ou sejá lá como te deixe. Infinitas possibilidades, menos o tédio de uma verdade suprema: és tudo o que posso te ofertar.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Raiva. Muita raiva. Era tudo que Ana Maria conseguia sentir nesse momento. Nada menos cabível. A vida tinha andado, finalmente. Desde os 15 anos estava emocionalmente envolvida com um mesmo rapaz. Mesmo que ele nunca venha a saber disso. Uma amor de menina, puro, simples, bobo: risível. Aff! Foram penosos três anos de amor calado, num silêncio que seria de túmulo, como dizem, mas a expressão aqui não ficaria boa, pois o amor não morreu. E amor enquanto não morre, aumenta. E assim foi. Ana Maria nutria esse sentimento com colheradas fartas de fantasias, de vontades, sonhos banais como comer brigadeiro embaixo do cobertor num domingo de chuva e frio. Suspirava imaginando a presença diária de Ricardo, seu sorriso perfeito. Imaginava com ele o acordar, o fim do dia. Ficava remontando com ele cenas de cinema e comercial de margarina. Os atores: ela, ele e três filhos homens loiros como o pai. Chegava mesmo a encenar certas fantasias e por vezes se pegava falando com ele, sozinha. Era como se ele realmente estivesse com ela as vezes. Ela sentia a presença dele de uma maneira triste de quem sabe que está se enganando. Enfim, assim foi por três longos anos de encontros ao acaso. E agora, sem mais nem menos, ela tinha enfim, se apaixonado por outro. E como assim se apaixonado por outro? Depois de tantos e tantos dias sofridos, sonhando, desejando, planejando... e tudo teria de ficar assim, perdido, largado, irrealisado, abandonado como uma caixa de sapato que ninguém guarda sapatos e então, não serve para mais nada. Quanta imaginação disperdiçada, quantos suspiros em vão. Que maldição, que peça o destino tinha lhe pregado. Ora quem diria, apaixonada por outro. Apaixonada por Getúlio. Homem sem graça, homem miúdo, homem pálido sem expressão, sem menor jeito de homem, homem que faça filhos (que dirá filhos homems). Entretanto, Getúlio era dono das fantasias sexuais mais cabulosas que Ana Maria poderia pensar. Não, não podia ser, isso não podia estar acontecendo com ela. Era muita injustiça para ser verdade. Isso devia ser coisa dos hormônios, muito tempo se guardando para um homem só dá nisso, a pessoa endoidece. Que fazer agora? Sonhar tudo denovo? Porque ela não iria dar a Getúlio os sonhos mais lindos de sua vida, os sonhos que não eram dele, não eram para ele. Era a vida com Ricardo. Era a vida feliz com Ricardo. Isso não combinava com Getúlio. Com ele a coisa era outra, era pele, era beijo, era amasso. Logo com aquele homem, que para morto, bastava perder a vida. Cruzes. Muita raiva, muita raiva. Ana Maria bufava de raiva. Agora, tinha dois amores, amava dois homens. E como pode ser isso, como pode querer a dois para ter do lado. Na verdade Ricardo era pra ter do lado, Getúlio era para ter emcima. Será que ela estaria condenada a sujeira de ter um amante para o resto da vida? Será que mesmo que se casasse com Ricardo, não haveria de tirar da mente os sonhos impuros com Getúlio? E teria de o procurar nas tardes em que o marido estivesse trabalhando e tivesse que arriscar todo seu casamento de margarina por insaciáveis aventuras carnais? Céus, esses pensamentos só a deixavam querendo mais. Os dois. E por fim se enchia de raiva e mais raiva. Como ela podia ter deixado isso acontecer, como ela tinha se deixado levar pelos encantos moribundos do outro. Será que nos dias de hoje não se pode confiar nem em si mesmo? Sua vida era tão feliz e amável enquanto tinha sido fiel a um homem só. E se a solução fosse acabar com Getúlio? O outro é que ela não ia querer ver num caixão. Será que depois que a morte  levasse Getúlio de todo, ele ainda atormentaria seus pensamentos e ela acordaria no meio da noite suando frio, gelada pelo desejo nunca realisado? Uma desgraça, era isso que sua vida era agora, arrastada ao amor por dois homens, dois homens! Deus jamais a perdoaria por tanta gula.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Marta não falava a verdade porque era boazinha. Nem por apreço a moral e aos bons costumes. É só porque falar a verdade dava menos trabalho. Mentir requer muita criatividade e disso, ela tinha pouco. Inventar histórias nunca foi seu forte. Não que fosse de todo incapacitada para inventar, mas era tão mais fácil dizer tudo como tinha sido. Sem falar que evitaria problemas futuros. Ela nunca seria pega, não tinha trapaceado. Por outro lado, uma mentirinha ou outra poderia ter lhe salvado centenas de vezes e evitado muitos problemas futuros. Nem sempre a verdade é bemvinda. Nem sempre a realidade dos fatos faz bem. Marta considerava isso um efeito colateral, quanto a ele não havia o que fazer, eram as consequências irremediáveis. Já os frutos da mentira, eram todos crias dela (de Marta e sua invenção). Marta sabia que falando a verdade ou a mentira, haveriam mal intendidos, corria-se riscos. Uma verdade pode trazer tanta destruição quanto a falta dela. Então, melhor falar tudo tim-rim-por-tim; além de menos trabalhoso, ainda se sai bem falado. Se algo desse errado porque Marta omitiu e inventou detalhes ou todo o tudo, a culpa seria, logicamente, dela. Ela teria que carregar esse peso para toda a vida. Já se, tudo desandasse por causa do que realmente aconteceu, a culpa não era dela, era do acontecido, das circunstâncias, do acaso (para os descrentes) ou do destino (para os que tem fé). E ela poderia sofrer, mas não poderia ser menos julgada do que qualquer um dos demais envolvidos nas circunstâncias. O que era, definitivamente um consolo, um alívio. Quem pode contra a própria consciência? É por isso que Marta achava que é preciso muito peito para mentir. Ao contrário do que a maioria pensa, Marta achava que é preciso muita coragem para dizer uma mentira e correr o risco de ser atormentado por ela até o leito de morte. Por isso, ela se colocava na ala dos covardes, dos mais racionais e menos inventivos. E assim, Marta não podia deixar de sentir remorso e de se criticar por ser tão apática. E, no fim das contas, apesar de tudo, acabou muitas vezes se sentindo culpada. Culpada sim, por não ter mentido, por não ter tido a virtude da mentira que teria sido tão mais confortável, tão mais certa. Quantas coisas Marta tinha destruído e visto cair por causa de sua sinceridade. Quanta dor ela sentia escondida, buscando sempre sua lógica de pensamento para lhe dar um alento, para aliviar a culpa. Por mais que a lógica lhe dissesse que ela estava certa em cumprir com a verdade, ela se sentia medíocre. Quanta coisa uma mentira pode evitar. Porque jogar tudo por terra, se uma mentira mantém toda ordem? Porque não aceitar a mentira se a realidade é tão maléfica? Se tantas verdades são temporárias, qual a diferença? Amanhã poderão ser mentiras; e as coisas mais inacreditáveis, outrora, não poderão virar as mais certas... Qual seria pior, o que seria mais digno de covardia ou heroísmo? Quem pode julgar? A consciência é juíz justo? A consciência é juíz justo. Até que se prove o contrário.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

sábado, 20 de fevereiro de 2010

E ninguém liga se no meio da noite eles trocam de perfume e ela vai embora com o cheiro dele e ele vai embora com o cheiro dela. A brincadeira de vice-versa é das mais gostosas. É como se levássemos um pedacinho alheio para casa. E quem pode dizer o contrário? O cheiro é das coisas mais fiéis que alguém pode ter, mais intrínsecas, mais pessoais, mais características. É sim, uma parte do outro (e tal como outra qualquer, volátil).  E o olfato é o órgào mais atento, mais sensível as lembranças. Cheiro disperta. Cheiro não se confunde. Por mais que seja a originalidade vinda de um vidro comercial, essa logo se dissolve, se perde. No fim, no fim da noite, o que fica é sempre o cheiro honesto, o cheiro de verdade, da verdade. O cheiro enganador fica pelos lençois. Na pele, fica mesmo é o cheiro da carne, o cheiro do corpo, o doce cheiro das travessuras a dois. E é esse cheiro que levamos do outro quando nos despedimos. É esse cheiro que sentimos pena de perder ao tomar banho. Mas não entenda isso como um roubo. A maravilha dos odores é exatamente a perpetuação, sua capacidade de multiplicar-se. O cheiro próprio se doa, mas sem nunca se perder. É o milagre compartilhado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Desde quando ele se foi, Catarina não trocou mais o lençol da cama de casal. Completariam 4 meses na próxima semana. Resolveu cultuar as escamas mortas da pele dele (pele rosada, pele frágil). Preferia assim. Lençóis alvos não tem história. Assim como a moça fiel que se casa nova abdica de ter dentro de si outros tantos. Adbica para ser cândica, lívida. Abdica porque acha que assim que deve ser, porque se sente completa com o que tem, porque não precisa de mais. Digamos que os que se contentam com pouco são os que não se perderam conhecendo todo o resto. E isso ela já era. O papel da lividez era dela e a ela bastava. Não tinha espaço na cama para mais disso. Não era com isso que ela queria dormir todas as noites. Seu companheiro deveria ser diferente.
Ao contrário dos que amam as páginas em branco porque sempre poderão enchergar nela mil possibilidades, ela preferia conviver com as escolhas. Não gostava do jogo de não ter nada para poder ter tudo. Apesar disso, sempre desejou a presença dos que contemplam e tem medo de serem presos pelas artimanhas das opções que fazem. Dos que acham que mais pesa o que perdem, do que o que ganham, quando optam. Traiçoeiro livre arbítrio.
Ela gostava das marcas, era uma mulher de escolhas, das que seguem caminhos, mesmo sabendo que assim acaba perdendo outras trilhas. A curiosidade nunca foi seu forte. Era mulher de ganância pequena, nunca desejou o mundo todo para si. Só queria parte dele. Uma pequena parte era suficiente. E justo a parte que mais desejou, tinha ido embora a 4 meses. Mas, quem podia culpar o mundo por isso, por ter pego de volta parte que lhe cabia? Quem poderia culpar a ela por ter se metido pelos caminhos que se meteu? Caminhos que a levaram aonde estava. E quem poderia ainda, culpar a própria parte escolhida por ter reivindicado seu direito de ir e vir? Ninguém tinha culpa. Culpa não era a questão. A questão era a história. Culpa não pertencia a ninguém, mas a história sim. A história era de muitos, inclusive do lençol. Não seriam as mão de Catarina que iriam arrancar daquele lençol, as histórias que tinham. Não era justo, não seria justo. Definitivamente ela não tinha esse direito. E por isso e por tantos outros mais, ela não o fez. Obviamente ninguém sabia disso. Do lençol. Todos achavam que ela estava reagindo bem ao término do casamento. E estava, realmente estava. Mas se ela contasse a alguém sobre o lençol, iriam criar problemas, tornar o que estava tudo bem em problema. E ninguém gosta de problemas. Melhor que fique tudo assim como está. Em time que está ganhando não se mexe. E ninguém mais tocava no assunto do casamento, não tinha porquê trazê-lo denovo para mais discussões. Só o lençol ainda lembrava do casamento. E de tudo mais.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

As minhas mentiras, tenho reservado às palavras mudas da minha escrita. Entretanto, por mais sinceridade que eu possa trazer em mim, só conseguirão enchergar versões daquilo que trago. Não é que sejas mal leitor ou eu seja pobre artista. É só que seus olhos veêm o que querem, querido. Sua vontade é criadora (e criativa). Sou eternamente fruto de suas mãos, objeto de seu pensamento, construção sua, mas realidade minha: molde, sempre a escapar da forma que queres.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

São 2:24 da madrugada de quarta-feira. Melina deveria estar dormindo, no entanto, a descoberta que fez entre os lençois lhe atormenta a cabeça de tal forma que o cansaço do corpo não vence a inquietação. Arrependimento: "Deveria ter me cansado mais durante o dia...". Não tinha atingido a exaustão nescessária para cessar o movimento da mente. E que maldita é a mente! Já estava quietinha em sua cama, no quarto mais fresco da casa, com ventilador de teto a espantar pernilongos quando se viu diante da revelção mais irremediável dessa fase de sua vida: era amor. Amor dos bons, dos verdadeiros, amor para uma vida toda, vida esta que estaria condenada a partir de então. Aff... Até pior, para mais de uma vida toda, afinal, o destinatário desse sentimento todo era morto. Tinha falecido a dois anos e levado com ele o pulmão de Melina. Desde então, ela passou a fumar cada vez mais e fumava hoje em dia mais de um maço por dia. Nas noites abafadas de insônia como essa, chegava a dois maços fácil. No maço do beiral da janela, restavam cinco resistentes cigarros. Cigarros como guerreiros que eram abatidos depressa, na perda da batalha contra ela mesma. O sexto guerreiro estava entre os lábios dela, vencido. Os olhos de Melina se perdiam nas luzes amarelas dos postes distantes que a janela do terceiro andar avistava com certa dificuldade perante o breu, que era maior. A fumaça que escapava se ia para perto do breu, da noite quente, de bafo seco.
Átila era o nome do defunto. Não que tivesse morrido de corpo realmente, sua matéria sobrevivia no estrangeiro. Tinham se conhecido, Melina e Átila, no carnaval que ela tinha passado com as amigas na capital. "Cordão do Boitatá". Foram logo queimando de paixão desde o primeiro beijo, no domingo de manhã de sol de pedir arrego em que o bloco seguia, e só terminou a noite, na cama de um muquifo qualquer da Lapa. O carnaval sempre gosta de terminar na Lapa. Fim do sexto cigarro. O calor dessa noite era tão estrangulador quanto o daquela outra, do domingo de carnaval de dois anos atrás. Tanto calor foi um certo problema para Átila. Mesmo já estando no Rio a um més por conta da doença de um tio-avô, ainda não havia se acostumado, não era do litoral de sua terra. Apesar de peruano, Melina achava que ele entendia do calor como ninguém, principalmente do calor que vinha dela. Era o que ela sentia entregue aos carinhos dele até a quarta-feira de cinzas (que não podia ter nome mais apropriado). "Pelo menos ainda é América Latina... e ainda tem os primos cariocas.." e ela ria de tanta dor e azar que tinha. Continuaram se falando por dois meses com a ajuda da tecnologia, principalmente internet, porque telefone era um verdadeiro assalto. Melina ia toda noite na casa da sua tia entrar na internet. Como eram vizinhas e a internet de casa era incrivelmente discada, mesmo depois sendo coisa aparentemente rara hoje em dia, isso de internet discada. A de Melina ainda era. Melina tinha sido criada com sua prima Estér, sempre foram vizinhas e confidentes. Estér tinha passado aquele carnaval com Melina como de costume e sabia de toda história, não podia negar-lhe cumplicidade. A internet. Via de mão dupla no relacionamento dos dois. Diante do monitor Melina pode conhecer melhor seu amoado e também toda família dele. Átila era casado. Malditos sejam os sites de relacionamento. E olha que ela demorou a descobrir. Na verdade, foi por muita insistência da prima que ela o procurou na rede. Melina acreditava na palavra de Átila, que dizia não ter tempo para essas coisas.
Átila tinha vindo ao Brasil por conta da morte desse tal tio-avô que na verdade preenchia o lugar de avô para ele. Seu avô tinha morrido quando ele tinha apenas quatro anos e se lembrava pouco de sua figura. Já com o tio avô, tinha convivido até os 15, aqui mesmo no Brasil, quando seus pais se separaram e ele voltou com a mãe para o país em que morava a família materna. Átila veio sozinho ao Brasil por causa do alto custo que a viagem teria se viessem o casal de filhos e sua mulher. Por um acaso, o parente tinha morrido em boa época e Átila pensou que seria um disperdício não estender por mais uns dias a viagem, para relembrar a festa que empurrava todo mundo para rua. Movimento lindíssimo, contagiante, encantador.
Foi isso. Depois de saber da história por completo, Melina deu fim a Átila. O deletou de toda forma concreta possível. Na verdade, ele já não a procurava a tempos, só o movimento inverso se fazia. Bastou ela parar. Não houve insistência (de nenhuma das partes).
Melina tocou a vida, teve outros amantes. A um deles, chegou realmente a sentir um afeto tão forte quanto o que dedicou a Átila. mas foi caso sem continuidade. Como todos os outros.
"Foi assim... - procurava pensar - lindo e eterno enquanto durou". Mas infelizmente, ela não tinha o desapego de Vinícius e era isso lhe martelava a cabeça então. "Meu Deus... eu amo aquele homem morto". E quê fazer com isso? Quê fazer com todo esse amor que não pode ser entregue? Amor como porta que só abre com a chave certa, que não serve a qualquer uma. Como ter sossego para descansar sobre o silêncio de uma noite tranquila, se ela transborda amor. Como descansar enquanto suas veias fervilham, seu pensamento insiste em transitar nas memórias, sua boca seca, engole palavras de afeto que descem azedas por estarem estragando na garganta? Como dormir com todo esse pulsar? Como durmir se ela está viva?

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A dor que ela sentia, ela bem sabia o que era. Dor antiga, dos tempos do cólera. Qualquer homem da face da Terra, certamente sofreu do mesmo mal. Talvez seja doença mais antiga que os próprios homens. Talvez seja a praga mais corrosiva de todas. Intrínseca ao humano. Dúbia, se pode ser causa primeira, pode também ser o grande ponto final. O motor que impulsiona e a tragédia mais certeira, capaz de motivar o mais duro e derrubar o mais convencido. Claro: amor. Que mais? Amélia estava com todos os sintomas. O diagnóstico era inconfundível e lhe caiu sobre a cabeça como uma sentença. Dentro do ônibus, via as ruas passarem com suas calçadas, sua gente, enfeites: tudo era igual, por mais diverso que fosse. O Rio cinza no verão de céu azul e calor dourado. Tirando ela, tudo mais brilhava. Era época de ano novo, lustroso, relusente. Só dentro dela era tudo velho: as mesmas dores, as mesma angústias, a mesma pena do mundo. Nada aliviava a dor da ausência, a solidão povoada, a solidão das companias. Não importava quem fosse, era sempre a mesma coisa, eram todos iguais: vazios. Não chegavam nem mais a dar a falsa impressão de conteúdo. Ela já os conhecia, mesmo sem trocar uma palavra sequer. Concerteza nenhum deles iria fazer diferença substancial em sua vida. Ela não esperava mais que a sacudissem, não esperava ser sacudida. Não esperava por alguém que a fizesse mudar de vida, nem que a fizesse querer mudar de vida. Só esperava da vida o morno, o que já foi quente e só faz esfriar. A constância, a linha reta, infindável linha reta.
Amélia não era o tipo de mulher que se chamaria de bela, mas tinha algo que a fazia interessante. Um ar de quem domina, um jeito de quem entende da vida, das coisas da vida. Uma cara de quem viveu e conhece, sabe dar forma. Cara de mulher com pegada e desejos a serem satisfeitos. Mulher misteriosa. E isso bastava, bastava para que sempre houvesse homens dispostos a preencher seu tempo. E a essa altura, já tinham sido tantos e eram tantos e tantos outros que se inscreviam como candidatos, que no final tanto fazia. Tanto fazia se fosse João, Pedro, José, ou outro apótolo, discípulo, anjo ou mortal. Todos seriam sempre iguais. Amantes e mais nada.
A dor que lhe expremia os órgãos e secava a boca não tinha direção, ou se tinha ela não sabia. Não sabia mais. Eram tantos e foram tantos que era impossível saber a quem era dedicado o gosto de fel. Então, não tinha solução. Não havia como saciar a vontade do encontro. Afinal, não tinha encontrado e nem vontade de buscar.