domingo, 19 de setembro de 2010

Lilás

Todos os dias ele saía com os anéis dela e minha correntinha no pulso. Jamais saberia a verdade. Nunca saberia que eu e ela sabíamos de nossa mútua existência na vida dele. Aqueles anéis nunca me enganaram e minha pulseira nunca tinha passado desapercebida aos olhos de Débora.
Débora e eu nos conhecemos no casamento de Maria Lúcia e Gustavo. Não era tão incrível que numa cidade de pouco mais de 120 mil habitantes se tenha amigos em comum. Getúlio inventou uma desculpa para mim e para Débora e não foi ao casamento. Preferiu fazer desfeita aos nossos amigos de bairro a ser "descoberto" como bígamo. Mal sabia ele que não se descobre o que já se sabe, o que já sabíamos. Seria antes, uma constatação. A essa altura eu apenas esperava que um dia ele me contasse. Ou que ela me contasse: a outra.
Débora era madrinha de Maria Lúcia e Gustavo. Estava belíssima com seus cabelos de cachos longos, presos com um enfeite de rosas metálico no alto da cabeça. Estavam arrumados de modo que apenas uma parte se prendia e outra ficava solta, expondo os cachos castanhos que chegavam um pouco abaixo dos ombros. O vestido era lilás e levemente decotado. Mostrava sem ser extravagante. O cordão e os brincos também era singelos mas precisos. Quem a olhava entendia o que aquela mulher queria. Acompanhei a toda cerimônia um pouco chateada de estar sozinha, sem Getúlio. Que fazer se a sogra tinha resolvido ter crise renal logo hoje? Até que parecia de propósito para não deixar Getúlio entrar comigo numa igreja. Ela nunca gostou muito de mim. Me ofereci para ficar com ele mas ele achou que seria muita desfeita aos noivos e eu já estava pronta, maquiada e de vestido novo quando ele chegou esbaforido da cozinha dizendo que o padrastro tinha ligado as pressas por conta da crise da mãe. Aceitei, mesmo porque não podia fazer muita coisa por dona Mersinha e sei que ela não fazia menor questão da minha presença.
Fui para a igreja. Como de costume me emocionei. Sempre fui uma pessoa sensível a felicidade dos outros, à promessa que é um casamento. Uma promessa que eu, ao contrário de Maria Lúcia e Gustavo, tive sem testemunhas. Eu e Getúlio não tinhamos casado na igreja nem em lugar nenhum. Um belo dia resolvemos morar junto e após uns meses amadurecendo a idéia, acabamos numa casa na rua Quinze, vizinhos do casal que hoje eu via no altar. Tinha ficado de ligar para Getúlio depois da cerimônia para saber da saúde da mãe dele. E assim tentei, sai da porta da igreja e procurei um lugar com sinal para o celular e pouco barulho para os meus ouvidos. A igreja tinha um jardim bonito e um pequeno parquinho para crianças atrás de uma capelinha que era a construção original da igreja de Santa Rita. Quando proporam reforma, decidiram ao invés disso, manter a antiga capelinha e construir uma nova. Manteve-se a nostálgica e humilde construção à sombra da vistosa construção que assumiu lugar central. Foi perto daquela relíquia, já caindo aos pedaços que achei sinal e um banquinho. Sentei-me e dei uma olhada a volta enquanto a ligação era completada. Inútil, só dava ocupado. Tentei mais duas vezes seguidas e nada. Decidi esperar um pouquinho. Vi que uma mulher corria na direção da capelinha. Vi, pelo vestido que era a madrinha bonita que até então não sabia que era a Dédora. Ela vinha correndo com jeito apesar do mega salta que ficou a vista por ela puxar a barra do vestido com uma das mãos. Na outra mão segurava o celular no ouvido. Vinha com uma cara tensa. Parou no meio do caminho, soltou a barra do vestido e ao longe via a conversa dela. Tentei mais uma vez ligar para Getúlio, mas linha permanecia ocupada. Não sabia nem para que hospital tinham levado minha sogra, não tinha como ir até eles. Estava aborrecida. Decidi ir me despidir dos noivos, achei melhor não ir a festa. Fui andando de volta para o alvoroço da porta da igeja filial, passei pela madrinha lilás e a ouvi dizendo que "então ia para festa". Fiquei pensando se não seria bom ir a festa também. Quando cheguei na porta da igreja tinha muita gente e não conseguia encontar os noivos, quando perguntei para um dos convidados me avisaram que eles já tinham ido para o clube. Fui saindo da igreja, atravessei a rua. Parei na calçada em busca de um táxi. Tentei ligar para Getúlio novamente, dessa vez ele atendeu. "Oi lilinha, desculpa, tava com Geraldinho no telefone". Geraldinho era um colega de trabalho que eu nunca tinha visto, mas que eu sabia quetinha uma ligação forte com Getúlio. Geraldinho era caderante e por isso não gostava de sair muito e seus passeios se limitavam ao trabalho. Getúlio me contou que ficaria a noite toda no hospital. Desliguei o telefone, pensei por uns instantes. Passou um taxi vazio, fiz sinal, ele parou, eu entrei: "Clube bandeirantes, por favor".
A decoração do clube estava belíssima. A moça na porta me direcionou a minha mesa. Tinha um lugar para mim e outro para Getúlio, tinham me posto numa mesa com mais dois casais do bairro. A mesa estava bem a frente do palco, proxima a mesa dos parentes e amigos mais chegados da noiva. O papo estava meio chato e todo mundo que me via indagava o porquê de eu estar sozinha e eu já estava de saco cheio de repetir a história de dona Mersinha. Por fim me limitava a dizer: "crise renal". O jantar estava bom, as sobremesas foram fartas. Fui ficando chateada e resolvi me entregar aos drinks. Tinha um telão no palco do clube que num certo momento começou a contar a história dos recém casados. Maria e Gustavo tinham estudado juntos desde pequenos. E começaram as fotos da escola. Tinham umas fotos bem engraçadas. Vi que a madrinha lilás estava numa mesa próxima a minha com um grupinho que ia zuando as fotos, riam e comentavam muito e alto. Imaginei que fossem os amigos que iam aparecendo nas fotos e que se conheciam de longa data. Ao longo das fotos fui percebendo sempre a presença de uma menina junto a Maria. Reconheci que era a madrinha lilás. As fotos foram avançando e surgindo fotos do casal já adolescente, já na faculdade. Fui vendo que a madrinha lilás sempre estava por perto. Aquele rosto me parecia familiar. Tentava forçar na cabeça da onde poderia ser. Olhava para ela na mesa a procura de pistas. Ela ria muito, estava cercada de homens e tinha uma outra madrinha com ela. Tinha os traços finos, uma sombrancela em desenhada e um nariz que apesar de comprido, caía bem em seu rosto.
As fotos foram seguindo. Derrepente uma em que aparecem Maria e gustavo abraçados fazendo pose ao lado de mais três pessoas. Empalideci. Reconheci Getúlio de cabelão ao lado da madrinha lilás. Me pareceu uma festinha da época de faculdade. Sabia que tinham estudado na mesma faculdade, mas não sei porque achei estranho. Acho que foi ciúmues da bela madrinha, vi que ela se escangalhou de rir quando paraceu aquela foto. Depois achei bobagem. Getúlio e Gustavo não tinham feito o mesmo curso, Getúlio era médico e Gustavo advogado. Acho que foi por isso que estranhei ao vê-los compondo a mesma foto. Resolvi achar normal, era uma faculdade particular, poucos alunos, normal que frequentassem as mesmas festas. Confesso que não enguli a madrinha e o fato do meu marido a conhecer me causava certo desconforto. "Que bobagem, ele nem sonhava em me conhecer, gente quanta tolice, sou mesmo muito idiota, ai".
Resolvi beber mais drinks. A festa estava chata. Os pais dos casados fizeram um discurso interminável depois da homenagem do telão. Já estava sonolenta quando a madrinha lilás entrou. A mesa que ela estava começou a assobiar e gritar "gostosa", "vai Débora", "lindaaa". Percebi que as pessoas da mesa tinham grande probabilidade de vômitos a uma hora. O alvoroço me deu uma acordada. Ela falou pouco e fez umas piadas. O casal agradeceu teve toda aquela lenga lenga de brindarem, e não sei o que, partirem o bolo e iniciou-se o baile. Era por volta de meia noite. Vi que as pessoas não iam durar muito tempo, uns pelo nível alcoólico outros pelo cansaço, outros pela idade avançada e mais outros pela pouca idade. Ficariam os guerreiros. Como sabia que nada me esperava em casa, fui ficando. Fumei muito. Os casais que me acompanhavam à mesa foram me abandonando aos poucos para a pista de dança. Não ousei dançar. Fiquei acompanhando a Débora de longe. A bebida me alterava os pensamentos e fiquei com raiva. Raiva do jeito solto dela. Uma oferecida. Ela e a noiva dançaram muito a noite toda. Já era quase três da madrugada quando resolvi comer uns salgadinhos para ir embora. Só haviam umas poucas pessoas na festa. Enquanto montava o prato, Maria Lúcia e Débora passaram por mim esbaforidas pedindo água aos graçons. Sentia o reboliço das duas ás minhas costas. "Marília". Reconheci a voz de Maria, me virei. "Oi lindinha". Estavam visivelmente muito bêbadas. "Oi Maria, olha a festa está linda, tudo muito gostoso, estou muito feliz por vc e Gustavo" disse tentando ser educada e me livrar delas. Maria riu, eu não entendi nada. Vendo o riso de Maria, Débora riu também. Esatavm as duas de chinelo, descabeladas, maquiagens borradas, visivelmente colando de suor. O gançon chegou com as taças de águas. Pareciam dois camelos as duas. Fiquei parada com o prato de salgadinhos esfriando na mão olhando a cena patética das duas. Estava meio sem paciência e queria sair logo dali. Por fim Maria me perguntou se tinha cigarros, disse que estavam na bolsa e que a bolsa estava encima da mesa. Elas me acompanharam até a mesa. Se jogaram exaltas nas cadeiras já esvaziadas dos vizinhos que me acompanhavam. Maria recostou na cadeira e me acompanhava buscar os cigarros na bolsa, Débora abaixou a cabeça e deitou-a por cima de um dos braços apoiados na mesa. Maria riu e sacudia Débora enquanto pegava um cigarro e eu acendi para ela. Deu uma tragada e enquanto bufafa fumaça falava "acorda porra, é meu casamento, você tem que aguentar comigo caralho, acorda diaba". E comçou a falar comigo um papo de casamento e ainda sacudindo Débora: "dá um cigarro pra ela que ela acorda rapidinho". Débora levantou a cabeça e riu e empurrou Maria Lúcia: "Mas é chata mesmo, cacete... não cansou de mim não criatura? Quando eu morrer, vou direto pro céu, Oito anos aguentando você Marilu, puta-que-pariu". E rindo estendeu a mão para pegar comigo um cigarro. Paralisei, ela usava a minha pulseira. A pulseira de prata que ganhei da minha avó quando fiz quinze anos e que estava com Getúlio. Era uma correntinha simples, fininha que ele adorava usar. Notando que eu congelei com o cigarro na mão e os olhos fixos na pulseira, Dédora puxou o cigarro dos meus dedos, pegou meu isqueiro de cima da mesa, recostou na cadeira e acendeu o cigarro me olhando com uma cara maliciosa. Pronto. Era ela. A outra estava finalmente diante dos meus olhos e era rara. Os olhos doces e a boca sedenta, fumava cigarro como uma francesa, me olhava com gosto. Senti que percorria meu corpo com os olhos, me apreciava. Maria Lúcia viajava no cigarro, parecia que estava fumando maconha. Gustavo chegou deu um beijo em Maria, lhe falou alguma coisa no ouvido, ela riu baixinho. Ele pediu licença a nós para levar a esposa. Eu sorri sem nada dizer. Débora me fitava. Ficamos nós duas. Ela apagou o cigarro antes que ele terminasse: "me aconpanha ao banheiro, preciso ver minha cara". Fomos, Débora ia na minha frente andando meio torta. Tivemos que atravessar a pista de dança, só havia um casal se agarrando. No me encostei numa pilastra no meio do banheiro em frente ao espelho da pia, logo atrás dela. Ela diante do espelho apoiou a bolsa na pia, se olhou, lavou o rosto, enxugou os olhos borrados com papel higiênico. Abriu a bolsa e tirou dela um baton numa cor marron muito feia. Passou na boca me olhando pelo espelho. "Gosto do seu cabelo", disse ela. Esfregou um lábio no outro, guardou o batou se virou para mim apoiada na pia me encarando. Não desviei o olhar. Ela se aproximou de mim, passou a mão entre os meus cabelos. Eu fui ficando gelada, ela olhava minha boca, passou os dedos nos meus lábios e me beijou. Eu tremia toda. Correspondi. Ela me apertava. Me entreguei a ela. "Me acompanha até minha casa, pegamos um taxi, não é muito longe." sussurou Débora, eu estava ofegante.
Fomos para a casa dela, estava muito confusa, mas sabia que queria ir com ela. Passamos a noite inteira juntas. Amei profundamente aquela mulher e entendi toda a situação. Por volta das seis da manhã, disse que precisava ir embora. Ela aproximou o rosto do meu, passou a mão nos meus cabelos e disse em tom suave: "você entende? heim, você entende? Somos um só. Somos todos um só. Não guarde mágoas".