sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Quando você está, as coisas são mais lindas

Como um rio cortando e dividindo a terra ao meio. Como a queda de temperatura ao anoitecer de outono. Ou como o aumento da temperatura por volta do meio dia em certos dias no inverno. Como uma chuva forte que cai no meio tarde e depois fica o cheiro de terra molhada. Como o elogio de uma criança. Como bocejar. Atribuir formas as nuvens. Ouvir uma música boa. Dançar descalço no fim da festa. Como comer o último pedaço do pedaço de bolo (mas também poderia ser como dar a primeira garfada e sentir o doce espalhar pela boca). Como beber um copo de água gelada depois de uma corrida. Como dormir vendo televisão ou ouvindo barulho de chuva. Como comer pão de queijo quentinho. Como chocolate quente. Como café. Como balançar na rede, na varanda, comendo pão de queijo quentinho com café ou chocolate quente, num dia de inverno ou outono, assistindo uma chuva forte e sentindo cheiro de terra molhada. Como caminhar na areia, na beira do mar. E como caminhar na grama. Como pegar carrapato na grama, as vezes. As vezes, como se embriagar. As vezes é que nem quando a gente ri até doer a barriga, sabe. As vezes é como perder no poker. Por cair num blefe. Tem vezes que parece disco arranhado ou também, barulho de quadro negro sendo arranhado pela maldosa unha de alguém. No geral é como semente virando broto, virando raiz, espalhando por toda parte, mas devagar e sem pressa. É fruta madura, docinha. Receber presente com cartão. Cheiro de tempero saindo da panela.Na casa da vó, é comida de vó. Cheiro de pão saindo do forno. No geral é assim, minuciosamente delicioso.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Amor

  Do outro lado da rua avistei um menino tímido, encolhido. Sentado no banquinho de frente para a ponte. Um cadarço desamarrado e uma blusa infantil. Tinha pressa não, descansava. Em uma das mãos apertava uma pedrinha qualquer. Riscava o banco com ela de vez em vez. Era um dia sem sol e sem chuva. Inquietou-me o fato de um menino de tão pouca idade estar ali, sozinho. Bem vestido e penteado. Tinha família, por certo. E casa também. Balbuciava em silêncio algumas palavras. Pela distância não conseguia ler seus lábios, mas o que dava a entender é que cantava. As crianças cantam histórias, inventam fantasias. Passam o tempo diferente de nós, adultos. Lembro-me de criar um monte de casos. Tudo virava gente na minha mão: pedras, folhas, bonecas. Minhas histórias sempre giravam em torno de seres humanos, sentimentos humanos, intrigas familiares, romances de contos de fadas (maldita seja a Disney). Algo de lúdico sim, mas no geral, tudo bem real (sempre fui uma criança de pés no chão, foi adulta que aprendi a voar). O meu amor pelas pessoas sempre foi notável. A psicologia foi a obviedade. O erro óbvio. Nunca se deve transformar uma paixão em trabalho. Bem se larga o trabalho ou bem se deixa de estar apaixonado. Como não pudia deixar de amar aos seres humanos, o fim é fácil  de concluir. Nunca exerci a profissão de psicóloga, não oficialmente. No dia-a-dia não preciso de registro para fazer uso dela, ou para que ela me use. É o que acontece com as coisas que amamos, nunca é possível abandonar ou ser abandonado integralmente, elas sempre nos puxam pelo pé pra perto delas, e percebemos sua presença nas mais inocentes minúcias para esfregar em nossa cara o incontestável: é amor. Irreversível e impregnante, inesquecível, permanente, sereno, eterno.

Asentimento

Há um tempo  em que todas as forças se esvaem. O corpo é tomado por um estado que busco o nome certo para dar, mas não há, não encontro em nenhum idioma. Um sentimento sem título, sem nem mesmo sentimento. Que existe apenas de ausências, nenhum preeenchimento. Um não sentir: (a)sentir. E a gente simplesmente não quer mais nadar. Cansa de resistir, cansa de relutar, cansa. E afunda. Bebe água, o sal arde nas vistas, o ouvido alagado, a cabeça submersa. Por alguns instantes e só. Paralisa e lá fica, num estado meio morto e meio vivo. Como se todo o ar saísse dos pulmões. Como se todo sangue escorresse das veias. Como se entregasse o próprio destino a Deus e esperasse que ele intervisse pela vida ou não. Torpor, dormência, entrega absoluta.  Um doar-se ao nada, ao vazio. Nulidade. Nem calor, nem frio. Nenhum sentimento mora mais dentro do peito. Anestesia. Por alguns instantes a alma só flutua dentro do corpo. Apenas habita, mas sem fazer uso dele.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Eu vejo o amor na falta de obviedade. O amor, em definitivo não é óbvio. E vem dos lugares que ninguém espera ou prevê. Tem predileção por mazelas e mal feitos, pelos erros, pelas intrigas. O amor gosta de contrariar, é rebelde e se afina nas entrelinhas que ninguém quer ler. Amar é quando se ama as imperfeições. O amor é o lugar onde os fracos tem vez. E os feios, e os covardes, e os burrinhos, os desleixados. O amor é a casa dos sujos e mal lavados. Aceita todo mundo de coração aberto. Ah, aceita os espertos, galãs, perfumados, bem sucedidos também, é claro. Mas esses são sempre aceitos por todos, então não quis falar deles. Prefiro sempre dar visibilidade aos rejeitados, que aqui são tratados com igualdade. O amor não fode mais e nem menos alguém por sua posição social, cor, sexo. Não preenche mais o rico ou o pobre. Faz todos de bobos. O amor é o cara. Ninguém se safa. O malandro perde. O ladrão perde. O traidor perde. A mocinha, o vilão. O mais astuto advogado não conseguirá argumentar em causa própria (nem alheia). O banqueiro não pode compra-lo. O professor não lhe toma lição. O arquiteto não é capaz de projetar um abrigo a salvo dele. Pro amor não tem esperto, pro amor só tem o amor. Fim da linha.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Aos meus pés cai sua máscara já decrépita e moribunda, e tal como vidro temperado se desfaz em milhão. Esmigalhada em tantas partes que se torna impossível a reconstituição. Eis que ela se desfaz de forma definitiva e irremediável, irreversível. Pela primeira vez, em anos, seu rosto se mostra como é. Tu desnudo diante de mim. Eu, cuidadosa admirando suas feições. Me perco nos detalhes, tens atenção não só dos meus olhos, mas dos meus ouvidos, mãos, dedos, me aproximo com a boca e sinto também o gosto. É certo que por certo não sei a que devo a honra de poder ver-te assim. Eu, que não sou mais que ninguém mas que cheguei mais longe que as anteriores, desconheço os motivos de minha façanha, contemplo sua realização inegável. Como pode? Como pude?
Então, estamos aqui, um diante do outro: vendo o que somos, o que temos. Meu feito me torna única e especial, digna de amor, e de subir ao trono como rainha, aos seu lado e de mãos dadas contigo.
Quer me coroar de imediato e propõe mais ouro do que eu poderia guardar, exibir, aceitar ou usufruir. É demasiado. Não tarda a sensação de estar sendo privada de ar, a sensação de estar sendo sufocada me toma o peito. Angústia. Medo, inquietude. Uma garganta arranhada, um vazio no estomago, gelo nas mãos, nuvens nos pensamentos. Um emaranhado de sentimentos. Tento organizar a mim mesma, tento refazer a mim mesma. Busco minhas referências, vasculho minha alma atrás de minha identidade, dos meus sonhos, minhas crenças, desejos. E misturado a isso ponhe-se a tona também inseguranças, dúvidas, tormentos.
Já não arrisco o que quero, já não afirmo o que sou, perco a precisão daquilo me constitui, daquilo que me caracteriza de forma idiossincrática. Puxo o freio. Do para quedas, agora alcanço o chão. O quanto te quero, chão. Com os dois pés plantados no chão, ergo a cabeça e contemplo o horizonte, esperando para ver o que o novo nascer sol tem para me oferecer. Ansiosamente e esperançosa, quis descansar e parei para admirar o dia que vem. Decidi viver apenas ele, respeitando a vez de cada um dos dias: vivendo um de cada vez e conforme forem surgindo por de trás das estrelas.