quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Dos trens

Eu, cercada por quatro lâminas de metal, não tinha escapatória. Do chão brotava o vapor que fritava dezenas de pés. Quando andei até o último vagão a procura de um acento, não imaginava todo o calor que me esperava dentro daquele caixote de aço. Sentei-me. Pensei em tirar os óculos escuros para enxugar um pouco o suor do meu rosto. Depois pensei numa estratégia de livrar meu colo da minha mochila preta de lona e da minha bolsa de material sintético ardendo na fervura da temperatura; e (ardendo) sobre minhas coxas. Olhei para as grades acima da minha cabeça (mais metal). Sugestivas, feitas exatamente para isso: pôr bolsas. Depois pensei que talvez não fossem caber, que a altura seria insuficiente, minha mochila estava estourando de cheia. Preferi deixar minhas pernas assando embaixo das minhas tralhas. Não havia espaço para mais ninguém nos acentos, já tinha gente em pé, acomodada como podia. Ninguém estava confortável, era visível. É o momento que você começa a se incomodar pela demora na partida do trem. Não sei quantos graus marcavam no Rio, mas vim a saber que no dia seguinte, a sensação térmica no centro foi de 46 graus centígrados. Surreal. E, o detalhe do horário: 12:30, horário de verão. Só chegaria em casa lá pelas 15:30, no mínimo, sendo otimista. Na verdade, acabei chegando as 16:00, não por culpa do trem. São dois trens até paracambi e as vezes acontece dos horários não baterem e ter de ficar em Japeri esperando o próximo trem. Quando isso acontece, provavelmente, o horário do ônibus para Barra do Piraí, também vai desencontrar com a hora que se vai conseguir chegar em Paracambi. Resta ter paciência e esperar. Alías, essas baldiações muito tem me ensinado a ser paciente e a tolerar viagens longas. Mas dessa vez deu tudo certo, calculei bem os horários dos trens e logo que aportei em Paracambi, subi no ônibus rumo as minhas mini férias descabidas. A culpa, da minha meia hora extra de treinamento de resistência foi do maldito ônibus de Paracambi. Maldito, nem tanto hoje em dia, porque realmente estou faixa preta em tolerância, mas já passei momentos tensos dentro desse ônibus.
Comparado com o ônibus de Paracambi, a viagem de trem é uma maravilha. Exceto no calor absurdo que estava fazendo. O trem vai mais rápido, o ambiente é mais divertido, a viagem é bem menos maçante. Sem falar que fome você não passa e ainda pode escolher o que vai comer, porque ambulante vendendo troço, não falta, e os preços são ótimos. E a fome sempre chega no ônibus, aí você pensa "poxa devia ter comprado um amendoinzinho... agora já foi, é tarde". E aí você tem mais uma variável para aprender a lidar: a fome! Dessa vez, não tive fome em nenhum momento da viagem, minhas bananas e maçãs deram conta. Mas, realmente de Paracambi a Barra, a viagem é sem fim. O ônibus passa por Paulo de Frontin, Mendes, e as paradas são intermináveis. Pouca gente fica do início ao fim da viagem dividindo o ônibus comigo. A cada parada você vai vendo o estoque de pessoas ser renovado e na parada das duas rodoviárias, geralmente só fico eu lá dentro, esperando a nova safra. Outro agravante é a péssima estrada. Nem tudo é asfaltado. Vamos todos quicando, dançando aos solavancos. Sem falar quando o ônibus vai abarrotado. Nesse dia, se isso tivesse acontecido, acho que não teria me saído tão bem no desafio. Bem ou mal, o trem tem bem mais espaço. As pessoas se movimentam, entram e saem ambulantes o tempo todo e vendem tudo e são berros e mais berros anunciando de tudo, e vão de um vagão ao outro (quando o trem permite, quando os vagões não são isolados), e é uma variedade de gente, de cores, de idade, de trajes, de cheiros, falas, sotaques. Nunca se espera encontrar uma mesma situação numa próxima viagem.
No trem reina o campo do inesperado. E, por mais que a viagem do ônibus não seja nunca a mesma, de certa forma, sempre parece ser. É muito mais constante. Dela sim se espera uma constância, uma mesmice: todos sentados; curvas e mais curvas; paradas e mais paradas; paralepípedos a perder de vista; muito barulho a ponto de em certos trechos, não conseguir ouvir o mp3; e muito mato visto da janela. Que mais pode se esperar? Na maioria das vezes só tragédia ou algum barraco. Talvez umas variáveis mais brandas: super lotação/pouca gente, lugar para sentar/ir em pé, motorista assascino/motorista lerdo, enfim. No entanto, as variáveis parecem ser muito menores do que na viagem de trem. Não digo que de certo são, digo que de certo parecem ser, de certo se espera que sejam. No mais, um pentelho fica ouvindo som alto no celular ou a fome atinge níveis de extremos.
Apesar de acentos duros e da coluna não ter posição sossegada, apesar da sujeira e mal estado dos trens, de todo o barulho e confusão que fazem os passageiros, pedintes, vendedores, pregadores, da agonia que dá ver o vagão do lado pulando em cima dos trilhos de uma forma que se espera que ele descarrilhe a qualquer momento (nos tres em que os vagões não são isolados), apesar de todos os pesares, no final das contas, a viagem de trem passa muito mais rápido, é muito mais suportável e rica. Algo que tem uma certa graça em fazer, algo que merece ser contado para os netos, entende? Ninguém vai querer contar que andava de ônibus de Paracambi a Barra do Piraí, coisa mais chata.
Só naquela quarta-feira, a viagem de ônibus foi mais suportável do que a de trem. Tinha a esperança de que quando o trem entrasse em movimento, o calor fosse atenuado pelo vento das janelas. Ledo engado. O vento veio, mas quente, bufando, denso. Parecia vir do atrito dos trilhos, quase uma fumaça. O dia baforava na nossa cara. E o ar mormo se misturava com a catinga humana exalada por todos aqueles suvacos suados que não tiveram outra alternativa dentro daquela sauna coletiva, a seco, pública. Fiquei imaginando a tempteratura dos trilhos. Acho que meus pés sabiam mais. Beber água não era hipótese viável, porque banheiro era piada e seriam três horas e meia no mínimo segurando xixi. Melhor aguentar a boca seca, do que a bexiga cheia. Força, aguenta. Praticamente um exercícios de meditação. Isso sim é saber abstrair, elevar o pensamento. Não aquilo que essa gente metida faz por ai. Isolado num canto da casa, do lado de uma fonte, ouvindo musicas de flauta num cd, é moleza. Pobre medita de outra forma, se não medita, medita. Não tem jeito, não dá para pedir para sair, não tem como pedir arrego.
O bom de ser nem tão pé-rapado, nem tão nariz em pé, é poder conhecer um pouco de ser os dois. É poder escolher, na maioria das vezes. Foi minha opção pagar só R$13,50 para ir para casa (tudo para sabotar a Normandy). Os prós e contras foram pesados, medidos, analisados e eu já imaginava os contratempos e sabia mais ou menos o que me esperava (porque saber mesmo, nunca se sabe) quando tomei minha decisão. E mesmo assim, a tomei. E, no final das contas, como diz minha mãe copiando o poeta: "tudo vale a pena se a alma não é pequena".

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