quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Travessia

    É que eu me sinto como ponte. Estrada, avenida. Eu te sirvo para o percurso. Te levo de um lugar, a outro lugar. E então, você segue. Sinto-me mesmo, às vezes, como chão. Chão para que o outro passe por cima. Você vai e eu lá fico. 

  É difícil que ninguém fique, só passe. Sinto falta de ficar. Sinto falta de sair. Sinto falta. Falta. Tem quem (me) atravesse mais devagar. Tem quem acelere de repente. Tem quem passe tão depressa. Tem quem nem repare que eu estou (sou) ali.  Tem quem carregue tanta carga e tão pesada, e eu a sinto em mim, pesando. Só é certo que, por fim, todos passem. 

 Tanto vai e vem me deixam marcas, buracos, pedras soltas. E quando me chove, é ter que lidar com a lama que fica, e me transbordam os buracos. Não consigo me levantar. Chego acreditar em natureza, natureza humana, natureza ponte. Mas é só porque preciso acreditar, justificar, entender. Que mais fácil é crer que sou obra de fora e não de dentro; que há um criador que ao criar, escolheu para mim o lugar de ponte e não de banco de praça, ou de pracinha, ou de parquinho... Assim, isento-me. Isento-me da responsabilidade de ser o que sou. E se não consigo transmutar-me em outra estrutura, sigo buscando um melhor jeito de sê-lo. Acovardo-me em buscar aí, beleza. A beleza do ser-ponte. Romantizar é o instrumento que uso para não me mover. Como me é caro, minha estrutura. Aceito inteiramente minha condição e nos enfeites que dou, experimento alguma liberdade. Finjo que sou a dona, e agora sim, obra de dentro e não de fora. Acho meu jeito de ser ponte. Abraço minhas rachaduras e assumo que são minhas.  Mais que isso: encontro nas minhas rachaduras um propósito, sem ficar presa no lamento de sua existência. Abraço meu ser ponte. Agarro-me em ver nele uma beleza que logo hei dizer. E só assim consigo fazer as pazes, com o que sou, abandonar a vontade do que não posso ser - carrinho de pipoca?

  Pois me diga você: se não há beleza em ser responsável por dar alguém uma passagem tranquila e segura? E se não é mais importante o caminho que os fins? E se esse meu modo não consiste puramente em respeitar o direito de ir e vir? E se tão logo, aqueles que se vão, também retornarão? Uma, duas, ou quantas vezes mais? Porque ficaria presa na dor de que não permaneçam. Viro o jogo a meu favor. 

   Se pego na sua mão e contigo atravesso. Sinto que fico o tanto que durar o percurso e então, é isso. Aproveitar o percurso sabendo a finitude, saber dizer adeus. 

   Na travessia, tantas coisas, e você sempre terá boas lembranças, aprendizados. Se isso não for belo, questionarei a estética; se acaso não pense assim, duvidarei de seu bom gosto e senso.

     Viver no transitório parece incessante e sem descanso. Sem pausa. Não se pode repousar. É estar sempre em movimento. Perpétuo. Eis a sentença. Sinto-me, mesmo, esgotada. Nessa, acabo me esquecendo que é preciso fazer reparos em mim e cuidar das deformações. Bom seria se alguém viesse e me deixasse nova, inteira. Mas talvez eu seja grande demais para que um só consiga (já que eu mesma, olhando daqui, não consigo ver nem meu começo e tampouco meu fim). Mas talvez, eu seja totalmente funcional como sou. Mas talvez, a vida seja mesmo isso. Mas talvez, eu precise muito manter essas imperfeições. Mas talvez, não haja nada para além disso. Mas talvez, o que eu quero não exista. Mas talvez isso seja eu, e meu eu dependa de ser assim - remendo. Meu modo. Modo tão longo e breve, como uma ponte. Estrada, avenida.


"Eles passarão, eu passarinho" - Mario Quintana

Um comentário:

Maycon Mello disse...

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