sábado, 6 de janeiro de 2018

  É incrível o quão perversa pode ser a vida. O quanto ela é ardilosa, o quanto insiste em bater nos pontos fracos. Como ela engendra meios de atingir as chagas que nos são mais caras, mais doídas. Admirável a capacidade da vida em nos derrubar por atingir em cheio as nossas questões mais insuportáveis: aquilo que de nós mais abominamos, o que mais repelimos e queremos distância, aquilo em nós que menos queremos olhar ou refletir ou questionar ou mexer. A vida quer pisar nos calos, expor os nós das entranhas. Quer saber da sua consistência. O quanto de pancada você aguenta sem ceder, mantendo-se firme aos seus ideais permanecendo o mesmo, sendo fiel a você mesmo... eis o que ela quer saber. O quanto você aguenta ser torturado pelo mundo, sem se deixar perder? Qual seu limite? A partir de que ponto você começa a se render?
   Sinto que regredi. Logo eu. As experiencias vão nos levando a mudanças, as vezes, tão radicais e impensáveis que em certo momento já não nos reconhecemos bem. Não sabemos quem somos, quem nos tornamos, o que permitimos que a vida fizesse conosco. Viver deixa marcas. Algumas são demasiadamente doloridas. Marcas, de uma amargura tal, que entala na garganta e dali não passa. Emudece. Há perigo nesses silêncios. Há perigo... Porque se não atinge a língua e vai boca afora, retorna ao interior e lá permanece. Ocasionalmente, sente-se o estômago revirado por  má digestão de palavras. As entranhas sofrem. A alma se encolhe, ensimesmada. Dores. Doloridas dores. Dores em tons de cinza. Opacas, sem brilho. Dores cheias de ar; comprimindo os pulmões, comprometendo o volume da respiração. Falta de ar.

    Até onde você suporta que doa? por acaso lhe é conhecido seu ponto fraco? Seu calcanhar de aquiles, você sabe citar? Que lugar a vida é capaz de chegar e te submeter, te reprimir, te agredir, desconcertar, até que você chore de medo? Até que você sucumba as regras impostas? E simplesmente aceite. E simplesmente se anule. Enfraquecendo os ideais, afrouxando as convicções...? Fazendo ruir por terra cada tijolinho que você se esforçou para por no muro durante todos os anos de sua existência-casa? E vira brinquedo de outrem. E já não escolhe por vontade própria, e já não almeja mais os próprios sonhos.E se pega a falar de coisas que jamais pensou dizer. E defende posições que jamais lhe pertenceram. E se vê a relativizar questões cuja resposta era implacável. Torna-se vacilante, incerto, inseguro. Teme as consequências de cada ato e já não age como antes. Já não se veste como antes, já não se porta como antes. A ferida, por tantas vezes cutucada, já não aguenta mais qualquer aperto. E aí você é domado em seu lugar mais seu. Intimamente perturbado. Intimamente penetrado. Intimamente vacilante. Em cerne, corrompido.

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